terça-feira, 23 de outubro de 2007

El-rei D. Leão da Selva

Certo dia D. Maldisposto
Os bichos mandou chamar,
Estava muito indisposto
Queria festa para animar.

El-rei d’ alma enfastiada
Só queria diversão
Chamou toda a bicharada
Para mimar el-rei Leão.

Foi assim que lá na selva
Houve grande confusão
A bicharada na relva
Numa mega reunião.

Veio um macaco pintado,
Um belo malabarista,
Ficou el-rei deslumbrado
Com o jeito do artista.

Depois veio o crocodilo
Com artes de imitador.
Veio de longe, do Nilo,
Fez d’ el-rei, nosso Senhor.

Depois o mestre elefante
A tromba veio tocar
Com o seu porte gigante
Até se pôs a dançar.

Chegou a bela serpente
Dançou ao toque da tromba,
Animou-se toda a gente
Foi uma festa d’ arromba!

El-rei Leão enfadado
Esqueceu-se dos bocejos,
Deu à juba animado
E ditou os seus desejos:

Decretou que d’ ora avante
Todo o dia haja festança
Pois se até mestre elefante
Hoje brincou que nem criança!

Foi assim que D. Leão,
O rei triste e descontente,
Se tornou D. Brincalhão,
Sempre a rir com toda a gente.

sábado, 13 de outubro de 2007

A escola

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!


Baixo a tampa e sento-me na sanita. Já está. Hoje já estou safo. Ninguém me viu entrar aqui dentro, posso esperar pela noite à vontade. A mãe vai ficar furiosa, vou chegar outra vez tarde a casa. Mas que se lixe, não quero saber.

Hoje já escapei. É a minha vantagem, a minha única vantagem: a rapidez. Porque eu sou rápido. Pequeno mas rápido. Posso sempre correr mais que eles. E eu sou esperto. Conheço cada buraco desta espelunca, cada esconderijo. E os brutos não me podem apanhar.

Odeio-os. Odeio-os a eles e odeio-me a mim. Porque tenho medo. Não sou corajoso e prefiro esconder-me. Prefiro enfiar-me na casa de banho, encolher-me aqui durante horas a fio. Passo as horas a ler histórias de aventura, histórias de heróis como eu nunca serei. Porque eu sou um cobarde. Morro de medo daqueles mentecaptos. Quem me dera ser bem grandalhão, mesmo que tivesse de ser mentecapto.

Hoje já estou safo. Na 5ª feira deixei-me apanhar. Disse à mãe que tinha brigado, escolhi um miúdo mais pequeno que eu. A mãe ficou furiosa, mas antes furiosa que preocupada. Se ela percebe ainda faz queixa, e se ela faz queixa quem paga sou eu. Fui bem avisado. Se alguém descobrir, dão cabo de mim. Antes quero a mãe furiosa, sem pena de mim ou dos meus arranhões. Antes quero ficar de castigo, todo o sábado fechado sem sair do quarto. Não me importo. Tenho os meus livros e o meu computador. Quem me dera que fosse sempre sábado!

A mãe nem sonha. Acha que estou a ficar um rufia. Outro dia recebeu uma carta da escola, a informar que eu falto às aulas. Ia tendo uma coisa má. Pensa que eu ando em más companhias. Nem ela imagina, quão más elas são! Disse-lhe que ia ao café, jogar matraquilhos. Quem me dera poder! Escusava de ficar aqui toda a tarde, nesta sanita fria e desconfortável.

Abro a mochila e tiro a caixa. Costumava estar na mesinha da sala, trancada a sete chaves, mas já há uns tempinhos que a tenho escondida. De dia anda comigo na minha mochila, de noite descansa debaixo da cama. Ninguém deu por isso. Todas as noites abro aquela caixa, pego nela e acaricio-a. Imagino que a uso um dia na escola, e por uma vez vou ser eu o herói. Por uma vez vão ter medo de mim. Se ao menos eu tivesse coragem... mas eu vou ter! Encho-me de coragem e decido que é hoje. Hoje eu vou ter!

Agarro-a bem com as duas mãos. Tenho de ser forte, não posso tremer. Atravesso o pátio completamente vazio. A minha aula já começou. Bato à porta e o professor abre. Começa a ralhar por causa do atraso. Não lhe dou tempo. Disparo uma vez, duas, três... disparo outra e outra vez. Depois viro as costas e desato a correr.

domingo, 30 de setembro de 2007

Vizinhos

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Chove. Uma chuva grossa, de pingos molhados. Pingos que se insinuam, gola abaixo, e nos arrepiam como dedos gelados. Dedos de fantasma que nos eriçam os pelos da nuca. Porque este é o sítio deles, a sua casa, o seu habitat. Porque isto é o cemitério, o mundo das almas inquietas que vagueiam num desassossego sem fim.

No cemitério está escuro. Escuro como uma noite escura de Inverno. E chove, uma chuva gelada e desconfortável.

Espreito o grupo. Debaixo dos amplos guarda-chuvas aguardam. Ouvem o arrazoado do padre gorducho, impacientes. Mudam o peso de um pé para o outro e maldizem o morto, que escolheu péssimo dia para decidir morrer. Não vêem a hora de isto acabar, de se irem embora para o quente de casa.

Também eu aguardo, impaciente. Aguardo que eles terminem para voltar para casa. Não posso entrar enquanto por aqui andarem. Também eu não vejo a hora de acabarem.

Eu espreito o grupo. São gente rica, cheiram a dinheiro. As roupas são caras e o jazigo é enorme. Enorme e antigo, cheio de nossas senhoras e anjinhos reboludos, quase tão reboludos como o padre ao fundo. Um jazigo de família, rico e ornamentado. Mas não como o meu. O meu é melhor, um dos melhores.

Olho para eles, estudo-os bem. Afinal, é útil conhecer os vizinhos. E esta gente é minha vizinha. O jazigo deles fica mesmo aqui, paredes meias com o meu. Nunca cá tinham sequer aparecido. Será que agora passarão a cá vir, ver o morto de hoje? Virão aos domingos, prestar homenagem ao finado?

O padre calou-se, a cerimónia termina. O grupo despede-se, está de saída. Dispersam-se e passam em grupos menores. Passam por mim sem sequer me notarem, ou notam-me com um olhar de nojo profundo. Nada de novo, estou habituado.

Foram-se embora, posso entrar. Entreabro a minha porta, desconfiado. O meu jazigo descansa em paz. Os meus cobertores ainda cá estão, dissimulados ali naquele canto. As minhas latas não foram mexidas. Tiro do bolso o pacote de vinho, o naco de pão e instalo-me para a noite.

Espero que não tornem. Não quero vizinhos.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Madame Rose IV (e último)

Assim a Rosinha foi ensaiando para um futuro risonho como vidente. A sua fama depressa se espalhou, ultrapassando as fronteiras do liceu feminino e conquistando o Bairro Alto de fio a pavio. A clientela cresceu, firmou-se, e a Rosinha montou um consultório à séria no quartinho independente, que tinha porta para a rua. O facto de ter desalojado a mãe da salinha da costura, onde ela exercia o seu modesto mister de modista, não a incomodou minimamente. E a velha Florentina, intimidada por uma Rosinha mandona e prepotente, resignou-se a receber as clientes na sala dos fundos.
O consultório foi um passo importante. A Rosinha decorou-o com esmero, investindo os primeiros lucros no visual, no seu e no do consultório. Tudo à grande. Metamorfoseou-se em Madame Rose à séria. O pessoal da vizinhança, as mulheres sobretudo, não se fizeram esperar. Batiam no vidro da cozinha do nº 6 da Travessa dos Inglesinhos, ao fim da tarde ou depois do jantar, para marcarem hora com a Rosinha. Com a Madame Rose, perdão!, que ela não era mulher de diminutivos ou de intimidades. E não era tonta como a Mãe Joana Preta, que dava consultas ao preço da uva mijona porque o seu coração, demasiado brando, se compadecia das misérias dos seus conterrâneos. A Madame Rose fazia-se pagar, e não era barata!
No liceu, cultivou amizade com as meninas de boas famílias, que a toleravam e amimavam como quem amima um macaquinho de estimação. A Rosinha, feia e deformada, mas que faz cabriolas divertidas com cartas e sinas e previsões várias. A Rosinha, a atracção do momento nos chás e nas tardes das meninas do Liceu.
A Rosinha, que de parva não tinha nada, sabia-se palhaço de circo. Mas, sabida como ela só, calava-se e representava, conquistando aqui e ali mais um crente fiel, estabelecendo uma rede de clientela. E não tardou a que as senhoras mandassem a criada marcar hora com a Rosinha, que as recebia com chá e bolinhos, servidos pela apagada Florentina.
E a fama da Rosinha cresceu.

Hoje a Madame Rose é a bruxa da moda, com consultório em pleno Bairro Alto, procurada por gente de diversos quadrantes: um ministro e três ex-ministros, políticos de todos os credos, gente do teatro e das artes, jornalistas conhecidos e intelectuais vários, empresários de sucesso, eu sei lá... só a nata da sociedade, que ao povinho a Madame não atende e os preços são proibitivos.
O nº 6 da Travessa dos Inglesinhos está irreconhecível, transformado que foi num consultório de luxo, obra de uma decoradora de renome (e cliente fiel da Madame Rose).
A Madame Rose, o esqueleto deformado e a alma negra, emana um misto de encanto e terror que atrai irremediavelmente certas personalidades, como um íman potente. Na Madame Rose confiam para gerir os seus destinos, o das suas empresas, o dos seus partidos. À Madame Rose recorrem para realizar os seus trabalhos: remover algum escolho, algum empecilho que ameaça no campo profissional ou pessoal. Porque a Madame Rose não tem escrúpulos, diz-se, e tem uma alma negra como a escuridão. Porque a Madame Rose é malévola, consta, e gosta dos trabalhos escuros, dos maus olhados, dos feitiços malignos. Porque a Madame Rose é só espinhos, a flor murcha desaparecida há muito. Porque é a Madame Rose.

domingo, 19 de agosto de 2007

Madame Rose III

A Mãe Joana era uma vasta preta grande e gorda, com um turbante colorido e uma escassa bata de trabalho que pouco escondia das coloridas capulanas com que se ataviava. Fazia a limpeza das enfermarias e tratava indiscriminadamente crianças, enfermeiras, doutores e outra fauna que por ali passasse por “Meu Anjo” ou “Meu Doce”. A Mãe Joana Preta, com um coração proporcional os seus 120 quilos de gente, condoeu-se da menina triste residente na Enfermaria 2 e tomou como tarefa sua distraí-la e instruí-la.
A Mãe Joana Preta, a mais improvável das companheiras, abriu novos horizontes na vida da Rosinha Silva. A Mãe Joana e os seus búzios, as suas macumbas e os seus maus e bons olhados. A Mãe Joana, íntima das almas boas e menos boas - e de algumas verdadeiramente maléficas - que povoam o além. A Mãe Joana Preta, contra todas as expectativas, conseguiu penetrar a couraça da Rosinha Silva e tomou-a como aprendiz e fiel depositária da sabedoria ancestral de que era portadora.
E assim se iniciou a educação da Rosinha, que revelou uma queda particular para estas ciências. Aos dez anos de idade a Rosinha tinha uma mente completamente lúcida. Sabia que a sua vida tinha mudado de rumo e percebeu a utilidade das novas valências. Pôs a sua arguta inteligência ao serviço da aprendizagem e rapidamente se tornou perita na decifração dos padrões dos búzios, das folhas de chá, e nas artes subtis da adivinhação. Absorvia os ensinamentos da Mãe Joana com avidez, e depressa leu uma mão como um livro aberto. Quando a Mãe Joana abandonava o Hospital para se dedicar aos outros afazeres (dava consultas durante as tardes) e as enfermeiras se encontravam ausentes, a Rosinha praticava as artes recém adquiridas nas outras crianças internas, manipulando os seus medos e dores com malevolência.
À medida que os meses foram passando e a Rosinha foi ficando pelo Hospital, o corpo deformado agarrado à cadeira de rodas, a sua maldade e dissimulação cresceram exponencialmente. Predizia destinos horríveis aos seus companheiros da enfermaria, tão mais cruéis quanto mais ligeira fosse a sua doença. Queria que todos sofressem o mesmo que ela.
As enfermeiras, pelo contrário, conheciam uma Rosinha doce e dócil, com tendência para se tornar a vítima da restante criançada. Uma Rosinha resignada cujo esqueleto, sabiam, ficaria deformado para sempre. Uma Rosinha que nem sonhavam ser um logro tão absoluto. Assim, sempre que algum novo residente se queixava da Rosinha, descobria da pior forma que ela era intocável, a mascote do corpo de enfermagem.

Quando, dois anos e nove meses volvidos, a Rosinha teve alta da Estefânia, deixou saudades à Mãe Joana e às enfermeiras. Não reconheciam a Enfermaria 2 sem a presença da menina coxa e vagamente corcunda que já pertencia à mobília. A Rosinha, pelo seu lado, também não reconhecia como lar o nº 6 da Travessa dos Inglesinhos. O Quim Zé quase não aparecia, namoradeiro como ele só, e a proximidade entre irmãos esfumara-se com os anos. A mãe Florentina, sempre apagada, fazia-se pequena na presença da filha, que era uma personalidade dominadora e malévola. A Gertrudes, que permanecera a amiga da Rosinha, rapidamente descobriu que era necessário um enorme tacto e um grande poder de encaixe para lidar com a adolescente rancorosa em que a Rosinha se transformara.
Mas a Rosinha sabia ser encantadora sempre que tal se afigurava compensador. De volta ao liceu feminino, depressa montou o negócio. Arranjou um baralho de Tarot e deitava as cartas em troca de presentes. Outras vezes lia a sina nas mãos das colegas. Moedas, doces, peças de roupa, lenços e laços, tudo a Rosinha aceitava. Vaticinava às colegas futuros risonhos, namoros e casamentos com rapazes de sonho, sucesso nos estudos às mais ambiciosas, que sonhavam seguir para a faculdade. De vez em quando lá dava o gosto ao dedo e predizia um acidente violento, um infortúnio ou uma morte precoce a alguma colega mais odiada, fingindo-se relutante e horrorizada com o destino. Descobriu uma nova forma de poder, com que muito se divertia. Conseguia pôr as moças mais crentes a fazer exactamente o que queria com conselhos judiciosamente administrados, gerindo a vida das colegas a seu belo prazer. E dava-lhe um enorme gozo ver as meninas do liceu feminino dançarem o fandango ao ritmo da Rosinha Silva.
Recolhia a informação discretamente. Afinal, tinha anos de prática de espionagem, apurada nas perseguições ao Quim Zé e nos corredores entre enfermarias, e um dom esmerado para ler nas entrelinhas, nos gestos e na linguagem corporal. Conhecia os sonhos e segredos de toda a gente e jogava com as ambições das interlocutoras. E divertia-se imensamente.
...
(Continua)

sábado, 4 de agosto de 2007

Madame Rose II

Mas o acontecimento que se veio a revelar decisivo, que marcou a metamorfose da pequena Rosinha Silva na Madame Rose, foi o advento que ficou, para a posteridade, como o ‘acidente’.
De pequenino o Quim Zé teve a incumbência de cuidar da irmã, devendo zelar pela sua segurança em todas as situações, substituindo-se ao pai ausente e à mãe apática. Mas com a entrada na adolescência, o Quim Zé deu por si a evitar por todos os meios a presença da irmã. Chamava-lhe a sua sombra, o seu apêndice, a sua carraça.
A Rosinha, furtiva de pequenina e ofendida no seu amor próprio, criou o hábito seguir e espreitar o Quim Zé. Assim descobriu os pequenos segredos do irmão, os primeiros arremessos da vida adulta: as beatas fumadas às escondidas, os primeiros bagaços na Leitaria do Ti Apolónio, as primeiras surtidas ao liceu feminino, a controlar a saída das meninas. Com o tempo a Rosinha foi acumulando uma sabedoria sobre o Quim Zé e a restante miudagem do bairro, sobre as suas actividades e segredos, que reservou para eventualidades futuras e que se veio a revelar de bastante utilidade.
Aconteceu numa tarde tórrida do princípio do Verão, à hora mais quente do dia, quando da Calçada do Combro se elevavam ondas de calor que distorciam a visão. Foi uma Rosinha de dez anos e tranças espetadas, irritada e afogueada pelo calor, seguindo o irmão pelas vielas do Bairro Alto e perguntando-se se não seria melhor esquecer, pelo menos por hoje, a sua perseguição, que cometeu o grande descuido da sua vida: deixou-se apanhar pelo Quim Zé e pelo Manel da Leitaria. O irmão agarrou-a pelo braço, os dedos mais apertados que um alicate, abanou-a com uma fúria transbordante e ameaçou, num rosnido:
- Se te apanho a espreitares-me outra vez, não queiras saber a sova que apanhas!
Não é que a Rosinha tivesse demasiado medo do irmão: o Quim Zé era assim, só fogo de vista, um daqueles cães irritantes que ladram mas não mordem. Um bluff, em suma. E a Rosinha sabia-o. Estava mais danada consigo, por se deixar apanhar, que amedrontada pela bravata do Quim Zé. Aproveitou um momento de maior frouxidão e safou-se do aperto, largando a correr para casa. Foi no momento em que se virou para trás, a meio da corrida, para gritar, num desafio:
- Ui, estou a morrer de medo. Tu és tão mau, tão mau...
que o carro a colheu e a atirou pelo ar, num voo planado de vários metros.
A Rosinha deu entrada no Hospital da Estefânia, onde ficou internada pelo exíguo período de dois anos e nove meses.

O irmão Quim Zé visitava-a amiúde, sentindo-se responsável pelo acidente. Mas com o passar do tempo a Rosinha, que sempre o culpou pelo acontecido, foi-se tornando arisca e agressiva, só espinhos sem rosas. E o Quim Zé, adolescente com assuntos prementes e inadiáveis em mãos, espaçou as vistas até se esquecer de aparecer por completo.
A mãe Florentina, pessoa dada a rotinas, visitava-a duas vezes por semana, às quartas e aos sábados. Era regular como um metrónomo e a mãe Joana Preta habituou-se a acertar o relógio da enfermaria pelas idas e vindas da Florentina. Instalava-se na cadeira à beira da cama, com o seu trabalho de costura, e deixava-se ficar, quase sem pronunciar palavra, até soarem as badaladas das cinco da tarde. Nessa altura guardava o trabalho na cesta, beijava a Rosinha na face e ia à sua vida vazia de significado. Mãe e filha pouco encontravam que dizer uma à outra.
A única visita que enchia de sol a vida da Rosinha, agora como sempre, era a Gertrudes da frente. Nunca se sabia quando viria: podia aparecer vários dias seguidos ou permanecer um mês desaparecida. Mas quando vinha, trazia a sua alegria esfuziante e a Rosinha perdoava-lhe prontamente as ausências. Esquecia o ódio negro que crescia no seu coração solitário, que alimentava nas longas semanas em que a Gertrudes faltava, e recebia a amiga com uma gratidão doentia. E a verdade é que, apesar da irregularidade das visitas, a Gertrudes nunca deixou de aparecer e de amimar a doente.
Do carro que atropelou a Rosinha Silva nunca se soube pormenores. Desapareceu pela calçada abaixo sem sequer olhar para trás.
.....
(Continua)

sábado, 21 de julho de 2007

Madame Rose

A Maria da Rosa Silva, Rosinha para a família, Madame Rose em negócios, nasceu num quartinho escuro num rés-do-chão deteriorado, no nº 6 da Travessa dos Inglesinhos, corria o ano da graça de 1945.
Em pequena, filha de uma menina remediada de aldeia e de um charlatão Lisboeta, até prometeu. A mãe cedo se empenhou na sua educação, ensinando-lhe com mestria a arte do passajado, do bordado e do ponto de cruz. Imaginava uma carreira promissora como modista de bairro ou, em alternativa, dotava-a dos atributos indispensáveis a qualquer menina casadoira que se prezasse.
Já o pai, centrava os seus esforços a educação do Joaquim José, o filho primogénito. Colocou grandes esperanças na sua educação e iniciou o seu treino nas finas artes da intrujice. Mas o rapaz saiu-lhe uma decepção. Coração mole por natureza, pouco persistente nas tarefas e com tendência para facilmente se traumatizar, não levava jeito no ramo.
O pai culpava a mãe. Dizia ser dela a má influência, que amolecia o rapaz. A mãe calava-se, já que era de seu feitio e educação a passividade perante os homens em particular e a vida em geral.
Rosinha, de nome artístico Rose, nunca interessou ao pai. Tinha o defeito supremo, jamais ultrapassável, de ter nascido mulher. Por tal, o pai nunca chegou a descobrir ser esta a filha por que o seu coração ansiava, alma gémea, capaz de o seguir e com ele aprender as subtilezas da profissão.
Assim, mercê do preconceito do pai, a Rosinha teve de traçar sozinha os seus caminhos na vida.

O Joaquim José, Quim Zé para os amigos, bem feitas as contas e passado o primeiro rancor de primogénito destronado do papel de Ai Jesus da família, mostrou-se um irmão dedicado. Assim que a Rosinha conseguiu alinhavar os primeiros passos, o Quim Zé fez sua a tarefa de lhe mostrar o mundo. Exibia a irmã como quem mostra o brinquedo de estimação.
A relação entre os irmãos teve alguns incentivos, a saber: a depressão apática da mãe, que a custo lá ia assegurando existência material dos filhos (não passavam fome nem andavam nus, há que dizê-lo com frontalidade), e o desinteresse do pai que, entre negócios escusos e uma amante fadista, não dispunha de tempo para entreter os petizes.
Por isso o Quim Zé, que era de se enternecer com as dores alheias, tomou a irmã a seu cargo. E, contra todas as expectativas, deu por si a gostar mesmo dela.
Já a Rosinha era de outra água. De pequenina apenas gostou de si própria e da Gertrudes. Mas, calculista de nascença, percebeu que o irmão era o seu fiel guardião e não o maltratou em demasia. Pelo contrário, habituou-se a usar o Quim Zé como seguro contra todos os riscos, inerentes às confusões a que era propensa.
E assim se criou um ritual, que se perpetuou até ao ‘acidente’: a Rosinha metia-se em trabalhos, exercendo e treinando, para contingências futuras, a sua maldade inata, e o Quim Zé tirava-a dos sarilhos, não raro à custa de algumas amolgadelas na carroçaria.

Nestes entremeios, enquanto os miúdos cresciam, o pai não ficava inactivo. A modesta quantia que a mãe trouxera de dote foi diligentemente investida em projectos de futuro. A saber: uma casa para a amante fadista e vários negócios pouco claros. Findos este trâmites, e esgotados os fundos de investimento, uma acção se impunha: a mudança.
Quando o Quim Zé contava 8 anos e a Rosinha 4, o pai saiu um dia para comprar o clássico maço de cigarros e não mais voltou.
A mãe, Florentina de seu nome, sacudida na sua letargia, levou a mal esta alteração do seu ritmo de desgostos. Depois de chorar três dias a fio encontrou enfim com que se alegrar: estava livre da presença opressiva do amantíssimo esposo.
Embora não de iniciativa própria, que a tanto não chegava o desembaraço da senhora, antes instigada pela maledicência e intriguice da vizinhagem, Florentina agiu pela primeira vez na sua vida. Tomou-se de brios, vestiu o vestido de ir ver a Deus, e foi à polícia dar parte do desbarato da sua herança.
Graças à conhecida celeridade das investigações policiais e consequentes processos judiciais, o pai continuou a viver no bairro com a amante fadista e com ela produziu mais um rebento, mas estas são contas de outro rosário, do qual daremos conta mais à frente.

E a Rosinha? A Rosinha ia crescendo e florescendo, mais espinhos que rosas. Para além do irmão Quim Zé, outra grande influência moldou a infância da Rosinha Silva: a Gertrudes do lado.
A Gertrudes era uma adolesceste vistosa e atrevida que vivia pendurada à janela de casa, no rés-do-chão do nº 8, namoriscando todos os rapazes e senhores que lhe passavam ao alcance da vista. Com o passar dos anos assumiu a vocação que Deus lhe deu e profissionalizou-se, sendo o consolo e a reserva de sanidade de muito pai de família no Bairro Alto e arredores. Como a própria Gertrudes gostava de afirmar, se já tivesse o negócio montado na altura, certamente o Miguel Silva não teria arranjado uma amante fadista nem teria abandonado o lar.
A Gertrudes era desbocada e ordinária, lá isso era, mas tinha um coração de ouro e uma alegria crónica e contagiosa, que transbordava para a casa ao lado. Era a única pessoa que conseguia atravessar as brumas da depressão da mãe Florentina e trazer algum ânimo ao nº 6 da Travessa dos Inglesinhos. Por ela, e só por ela, a Florentina suspendeu a sua moralidade retrógrada de menina de aldeia, dedicando-lhe uma amizade profunda e sem reservas. E por ela se apaixonou irremediavelmente a pequena Rosinha, tomando a Gertrudes como modelo de vida e dela bebendo avidamente cada palavra. Copiava-lhe os meneios e maneirismos, os ditos e piropos. Se alguém se interessasse e lhe perguntasse, a Rosinha diria que, quando crescesse, queria ser puta de bairro como a Gertrudes do lado.
...........
(Continua)

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O Dia D

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Hoje saí. Não fui muito longe, fiquei-me aqui pela Praceta, no banco em frente da porta. Não é uma grande Praceta, nem um grande jardim, assim no meio dos prédios. Mas tem um banco e alguns canteiros, uma árvore e uns raios de sol. E ao sol sinto-me quase quente, quase reconfortado.

Hoje saí e sentei-me no banco. Não muito tempo, que já não consigo. Canso-me demais. Mas queria despedir-me. Do sol, e do dia, e do ar livre, mesmo com cheiro a escape. Mas é melhor do que nada, é mais do que eu tenho tido. E posso sempre fechar os olhos, sob os raios de sol, e pensar que estou na praia ou num bosque frondoso.

Hoje é um dia bom. Na maior parte dos dias não me levanto, estou fraco demais. Dormito e medito, vegeto apenas. Mas hoje não. Hoje é um dia bom. Ainda existem, cada vez menos mas ainda existem.

Não quero viver assim. Não quero morrer aos poucos, devagar, sem acordo de mim. Não quero impor-me essa morte nem impô-la aos outros. Não me quero impor a ninguém, muito menos àqueles que amo, corroendo o amor com a degradação de um fim doloroso, indigno. Não quero ser um velho moribundo e sofredor, incapaz de tratar de si. Quero que me recordem assim, como estou hoje. Ou melhor, como era há um ano, há dois, antes de tudo isto, antes do princípio do fim.

Está decidido há muito. A decisão está tomada, está tudo a prontos. Sou precavido, sempre fui. Tenho tudo o que necessito. Tratei disso há mais de um ano, enquanto podia. Quando soube que era desta, que desta era de vez. Hoje é o dia. Vai ser pacífico. Vou morrer como quem dorme, num sonho infindo.

É esta noite. Quando todos dormirem, quando não houver movimento, será a hora. Posso esperar, é a vantagem da insónia. Posso esperar calmamente. Então, quando todos dormirem, tomo os comprimidos. A embalagem toda, por via das dúvidas. E depois, Ah, depois... depois instalo-me na minha velha poltrona, à janela, preparo um whisky e acendo um cigarro. As saudades que eu tenho de um whisky, Deus meu!, e de um cigarro!

Da minha velha poltrona vejo um pedaço de céu, negro e estrelado. Recosto-me e saboreio. E quando Ela chegar, hei-de dar-lhe as boas vindas.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Quando eu for grande


Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Eu cá quando for crescido
Quero ser o Pai Natal,
Não quero ver ninguém triste,
Não quero ver ninguém mal.

Quero dar prendas a todos,
Quero todos bem contentes,
Não quero ver ninguém triste,
Quero todos com presentes.

É a melhor profissão
Pai Natal é que eu vou ser
Vou viver no Pólo Norte
Onde o frio é a valer.

Ser Pai Natal é bem fixe,
E depois, para além de tudo,
Posso ter fato vermelho
Ser barbudo e barrigudo.

Posso entrar nas chaminés,
Deixar a prenda na meia
Posso voar no trenó
Não é uma boa ideia?

O Pai Natal é bem fixe,
Faz toda a gente feliz,
Ser um grande Pai Natal
É tudo o que eu sempre quis.

sábado, 23 de junho de 2007

Não voltarei



Contemplo a casa. Enorme, desmesurada, repleta de vazio e silêncio. Descabida. Foi, um dia, a minha casa. Casa dos meus pais, dos meus avós, de inúmeras gerações antes deles. A nossa casa.

Hoje dela restam quatro paredes, esburacadas qual boca cariada. As janelas abrem-se para o vazio, olhos cegos ao mundo.

Entro. Os fetos crescem, por todo o lado. Da segunda janela da esquerda, onde um dia foi o meu quarto no inacessível primeiro andar, uma animada ramada de mimosa espreita a rua, incongruente no seu amarelo vivo. Ali está, a casa da minha infância, onde passei férias encantadas na companhia dos meus avós.

Recordo a avó, pequenina e engelhada, a cara viva e os olhos brilhantes reflectindo as labaredas do fogo. Aterrorizava-me com as peripécias das antepassadas bruxas. Depois, vendo-me transida de medo, consolava-me com abraços rápidos e enormes nacos de pão barrados com compotas caseiras. Ensinava-me as tradições da família, dizia, preparava-me para assumir a herança de uma estirpe de grandes bruxas, da qual ela era a orgulhosa representante e eu a semente futura.

Recordo o avô, grande e calado, deixando as despesas da conversa com a avó. O seu refúgio era o seu bote a remos, no qual passava os dias fumando cigarros e ensinando-me a pescar.

Nunca mais os vi. Não sei o que lhes aconteceu. Desapareceram completamente, sem deixar rasto. Quando voltámos, quando nos foi permitido voltar, já cá não estavam. Nem eles nem ninguém que os tivesse jamais conhecido. Desapareceram pura e simplesmente, como se nunca tivessem existido.

E a casa neste estado. Há um buraco em particular que atrai o meu olhar. Não sei porquê, é igual aos outros todos, aos inúmeros buracos que enfeitam a nossa parede. Sem dúvida buracos de bala.

A custo desprendo o olhar do buraco, da parede. Percorro a casa. Só o rés-do-chão, claro, do andar de cima não resta nada. Com alguma apreensão, confesso. Recordo os avisos, omnipresentes, para não penetrar nas ruínas de guerra. Quem sabe o que ainda ali haverá? A velha lareira ainda cá está. De pé. Encosto-me a ela e pergunto: o que terá sido feito deles? Como terão morrido? O avô que me ensinou a pescar, a avó que me deslumbrava com as antepassadas bruxas? Terá sido rápido?

Encosto-me à lareira e procuro dentro de mim. Não sinto nada. Não voltarei.

domingo, 10 de junho de 2007

A verdadeira História da Carochinha

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!


Uma certa manhã, que é como quem diz, um certo après-midi, a Carochinha acordou com uma forte dor de cabeça e a boca a saber a papel de música, fruto de mais um dia, isto é, uma noite de labuta.

De mau humor, que isto não é vida!, deteve-se a contar as suas poupanças para se reformar daquelas andanças. Mas as economias eram escassas, que as coisas estão duras mesmo para os trabalhadores mais dedicados.

Mas a Carochinha era uma rapariga industriosa! Afinal, nem toda a gente é capaz de largar o país, a casa, a família, deixar tudo para trás e vir à aventura, em busca da sorte e da fortuna! A Carochinha era uma rapariga de iniciativa e sabia-o.

E depois, tinha aquele corpito que Deus lhe deu, e a carinha laroca, que bem lhe tinham valido para se safar na vida. Enfim, ao menos não andava na rua como umas e outras que conhecia! No bar os clientes eram gente elegante e endinheirada, ofereciam prendas e pagavam copos. Não é que não fossem uns porcos, lá nisso são todos iguais, os homens não podem ver um rabo de saia! Mas ganhava-se a sério, massa da grande. E não se apanhavam tareias!

Mas pronto!, ainda assim! O que é de mais é de mais, e depois, a Carochinha sabia que não caminhava para nova. Ainda era bonita, ainda era desejável, mas os anos não param e em breve deixaria de o ser.

Neste estado de espírito, tomou uma decisão: estava na hora de procurar marido. Requeria-se que fosse bem abastado, bem apessoado e bem apetrechado, que a Carochinha queria reformar-se mas não tanto.

Sentou-se à secretária, lápis em punho, e dedicou-se à difícil tarefa de alinhavar duas palavras inteligíveis por terceiros. Depois de muito suar e desesperar, produziu a seguinte obra-prima, da qual muito se orgulhou:
“Mulher jovem, bonita e com posses procura cavalheiro bem na vida para relação séria e futuro compromisso.”
Feliz, consigo própria e com uma tarefa bem realizada, a Carochinha mirou-se no espelho e perguntou-se:
- Quem quer casar com a Carochinha, que é airosa e formosinha?
E preparou-se para seleccionar pretendentes.

Nos dias seguintes a Carochinha não teve mãos a medir. Os pretendentes afluíram e a todos ela entrevistou. Até tirou a semana de férias!

Mas os rapazes foram uma desilusão. Uns eram jeitosos mas não tinham fortuna, outros tinham dinheiro mas eram gordos, uns eram bem falantes mas tinham voz de cana rachada, outros tinham uma voz de cantor de ópera mas só diziam ordinarices… enfim, uma desgraça! A todos a Carochinha rejeitava, em todos descobria defeitos.

Já a Carochinha desesperava, prestes a desistir, convencida a permanecer solteira para todo o sempre, quando lhe apareceu o João Ratão. Foi amor à primeira vista! A Carochinha ficou deslumbrada.

O João Ratão era um pintas ali do bairro, bonito como ele só, com elegância natural e charme para dar e vender. E muito, muito bem-falante! Fazia profissão de seduzir senhoras solitárias, que lhe pagavam a companhia e outros préstimos. Era um bocado fala-barato, há que confessar em abono da verdade, e um charlatão de primeira, mas era encantador e um bon-vivant. E a Carochinha apaixonou-se irremediavelmente.

Marcaram o casamento num prazo recorde. A Carochinha, convencida de que tinha arranjado herdeiro rico – o João Ratão disse-lhe que era filho de latifundiários ali da Lezíria do Tejo - nem acreditava na sua sorte. E o João Ratão, convencido de que casava com uma esposa abastada, para além de bonita, preparava-se para se dedicar aos seus verdadeiros interesses na vida: mulheres, toiros e vinho.

O resultado era óbvio: escassos três meses após o casamento já os esposos se tinham desenganado. E a paixão assolapada, tão rápida a despontar, foi igualmente rápida a converter-se em ódio assolapado.

Porque o João Ratão, frustrado com a escassez das economias da Carochinha, não parava em casa e, quando aparecia, era para confiscar os ganhos da esposa e para lhe arriar um sopapo por outro.

E a Carochinha, os sonhos de grandeza desfeitos, não só não se reformara como ainda sustentava o João Ratão.

No dia em que a Carochinha deu entrada no Hospital, estadia patrocinada pelo João Ratão, uma queda das escadas segundo a versão oficial, tomou a sua segunda grande decisão: estava na hora de se livrar do marido!

O João morreu na noite em que os esposos comemoravam cinco meses de casados – uma congestão no banho, segundo a versão oficial. Nem queiram saber a versão real!

domingo, 3 de junho de 2007

Soube assim que te vi

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Soube assim que te vi. Estavas parada, sozinha na multidão, e nem me notaste. Entraste no autocarro, à minha frente, e eu, hipnotizado, segui-te até lá ao fundo. Tu nem me viste mas eu, eu aspirei esse teu perfume, doce e inebriante, distinto no meio de tantos odores. E soube. Soube que eras tu.
Segui-te. Desci na paragem, logo atrás de ti. E vi-te andar, como quem não tem pressa, atravessar o jardim e entrar naquela porta. A tua porta.
Nessa noite sonhei. Vi o teu perfil, o teu pescoço alto, elegante e levemente inclinado pelos balanços do autocarro. Esse teu pescoço, tão bem delineado, feito para ser acariciado. Sabes que eu gosto de pescoços. Gosto de lhes tocar, de os acariciar, de sentir a vida a palpitar neles. E o teu é tão esbelto, tão suave....
Soube que não teria descanso, que tinha de te voltar a ver, que tinhas de ser minha. E esperei-te, noite após noite, naquela paragem. Noite após noite apanhei o teu autocarro, sentei-me atrás de ti, imaginando esse teu delicado pescoço nas minhas mãos, torneando-o, afagando-o, pressionando-o. Noite após noite atravessei o jardim, na tua sombra, amando-te em silêncio. E fui feliz porque tu, sempre alheada das realidades, nunca me viste, nunca reparaste. Fomos felizes, tu e eu.
Mas tu, tu tinhas de estragar tudo. Não te bastava seres amada, eu não te chegava. Tiveste de arranjar esse tipo. Esse tipo nojento, que te acariciou e te beijou, te conspurcou e te profanou. No nosso jardim! A mão dele, pousada no teu pescoço!
O pensamento é insuportável! Não o podia permitir! Nunca mais, nunca mais ninguém tocará nesse teu pescoço. É meu, não permito que ninguém lhe toque. Finalmente posso senti-lo, posso tocar-lhe, rodeá-lo com os meus dedos. Sinto a vida sob os dedos, ceder ante a pressão. Sinto a vida a palpitar, mais e mais devagar, sinto-te a abandonares-te a mim. E vês-me, finalmente vês-me. Olhas-me, finalmente, olhos nos olhos. Sabes que eu existo e tens medo. Serei a última coisa que vês. E sabes, eu sempre soube. Assim que te vi, soube que ias ser minha.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Eu tenho uma namorada

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Lá na escola há uma menina,
Muito linda e engraçada,
O seu nome é Carolina
E é minha namorada.

Ela anda de ganchinhos,
E de roupa cor de rosa,
Usa saia e sapatinhos
É bonita e vaidosa.

Eu sou sempre desgrenhado,
A calça com joelheira
O sapato maltratado
Pela muita brincadeira.

Ela gosta de bonecas,
De casinhas e da escola,
Eu gosto de bicicletas
De correr e jogar bola.

Muitas vezes temos brigas
Depois fazemos as pazes,
São estranhas as raparigas,
Tão diferentes dos rapazes.

Mas eu gosto muito dela
E ela gosta de mim
Namoramos à janela,
E já casámos no jardim.

Eu tenho uma namorada,
Que se chama Carolina,
É bem gira e engraçada,
Apesar de ser menina.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

A Branca de Neve is out there

A pedido de várias famílias, a sequela do Grande Êxito de Bilheteira
“A verdadeira História da Branca de Neve”
(ok, foi só a pedido de uma família... ‘tá bem, pronto, foi a pedido
de uma só pessoa, mas foi uma pessoa importante, ‘tá bem?
Foi a pedido do Luís do
Atirei o Pau ao Gato).

......

Ilustração do Tacci, do Portugal, Caramba!


...........
Se bem se recordam, prezados senhores, a Branca de Neve era uma menina pouco recomendável, dada a más companhias e comportamentos duvidosos.

Um dia o tiro saiu-lhe pela culatra e a Branca de Neve acordou muito maldisposta, numa cama desconhecida e com uma bata de bradar aos céus. Pelo amor de Deus!, um trapo daqueles nem para os pobres! Quem desenharia estas coisas, não haveria um estilista que fizesse algo mais apresentável para aquela gente? É o que dá, frequentar hospitais públicos! Povinho, credo!

O pai, um senhor algo volúvel e inconstante, visitou-a no Hospital. Chato como a potassa, não desamparava a loja! Foram vários os teores da sua conversa, a saber: que sofria muito, que não compreendia a filha, que lhe dera tudo, como pudera ela fazer-lhe tal coisa logo a ele, pai extremoso, que a culpa era dele, que se ia separar da madrasta, que a filha estava de castigo ad eternum, que não podia ver mais os Sete Anões, que...

Enfadada, a Branca de Neve distraiu-se com um jovem médico que por ali andava e que, há que dizê-lo com frontalidade, era um gato.

No dia em que o pai a levou do Hospital é que foram elas: cortou-lhe a mesada, controlou-lhe as saídas e os amigos e, pior de tudo, destacou-se a si próprio como cão de guarda e passou a andar sempre de roda dela, a representar o papel do pai preocupado e solícito. Uma seca! E já nem sequer tinha a madrasta para se entreter com umas sacanices à maneira...

Quando o médico lhe telefonou para a levar a jantar, a Branca de Neve estava à beira de uma ataque de nervos. Estava capaz de sair com o Frankenstein, desde que saísse!

Mas depressa viu as vantagens da situação. O jovem médico, idealista e romântico, metia a Branca de Neve num pedestal. Deslumbrado com a sua beleza, mimava-a de todas as formas e feitios. Levava-a a todo o lado, a restaurantes de luxo, a teatros e à Ópera (lugares que a Branca de Neve nunca frequentara, apesar da fama do pai de homem culto). Enviava-lhe rosas, tão brancas como o seu nome, oferecia-lhe jóias e vestidos, levava-a a passear pelo país e pelo estrangeiro... e, principalmente e acima de tudo, pagava tudo isto com um belíssimo cartão de crédito Gold. A Branca de Neve apaixonou-se!

E nem sequer lhe era muito difícil representar o papel da musa do jovem médico: bastava-lhe ser decorativa e o mais consumista possível. E, claro, manter-se longe das drogas, o que se revelou nem ser demasiado difícil. Andava tão distraída, com tanta coisa nova para ver e comprar... E depois, sem stress, se alguma vez não aguentasse a pressão, haveria sempre um comprimidinho milagroso para ajudar. De resto, o jovem médico tinha receitas por todo o lado e a Branca de Neve, claro, era perita em falsificar assinaturas.

De vez em quando assaltavam-na umas saudades dos dias aventurosos com os Sete Anões, em que partiam estádios, assaltavam bombas de gasolina e snifavam coca. Mas pronto, não se pode ter tudo, e a vida com o jovem médico até nem era nada má. Tudo bem pesado, a Branca de Neve lá se dispôs a dar o nó.

Quem ficou por demais orgulhoso foi o pai da Branca de Neve. Quem o ouvir ficará a saber como ele, pai exemplar, criou uma filha sozinho e a tornou num ser humano extraordinário, noiva linda e colunável de um doutor de excepção. E claro, se alguém tiver a falta de gosto de lhe recordar os conturbados meses de juventude, ele dirá só, à laia de confidência, que nada como o apoio da família (leia-se pai dedicado), para ultrapassar os problemas da adolescência.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Foi por te amar...

Ilustração do Tacci, do Portugal, Caramba!

Olá pequenina. És tão bonita. Olha, podes continuar a dormir, eu vou-te levar à tua mamã. Vá, fica sossegadinha, o meu colo é muito bom. É melhor que o da tua mamã, sabes? Podes encostar a cabeça, eu tomo conta de ti. Olha, queres um chupa? Toma, é de morango.
Tens uns cabelos tão lindos, tão lindos... Não, não tenhas medo, estava só a sentir o teu cabelo, é tão macio e tão loiro! Não precisas de ter medo, estamos quase a chegar, já vais ver a tua mamã... É bonita, a tua mamã, é uma senhora bonita, não é? Assim como tu. Isso, estás-te a portar muito bem. Estamos quase a chegar. Paramos aqui um bocadinho, está bem? Vamos descansar só um bocadinho. Olha, deita-te aqui, bem junto a mim. Encosta-te aqui, para eu te sentir.
Tens uns cabelos tão lindos... Era capaz de mexer nos teus cabelos para sempre. Cheiram tão bem, os teus cabelos! Os cabelos dos crescidos não cheiram tão bem, sabes pequenina? Não, não chores, pára! Não grites, não é preciso. Não te quero fazer mal, gosto muito de ti. És tão linda, tão macia... nunca te poderia fazer mal... Pára, estás a fazer barulho. Vá, pequenina, não te quero fazer mal, eu só faço coisas boas, estás a ver? Não são boas, as festinhas? Não chores, pequenina, olha, come o chupa e eu faço festinhas, assim, assim... eu só faço coisas boas, sabes? Porque é que choras, não gostas do que eu te faço? Não é bom?
A culpa é tua, pequenina, porque és demasiado bonita. Ninguém devia ser tão bonito. Como é que eu vou resistir, com uma coisinha como tu sempre a correr por ali, hã? A culpa é tua, e daquela tua mamã, que te deixa à solta. Eu sou melhor que a tua mamã, amo-te mais que a tua mamã. Eu não te deixo sozinha. Amo-te. Vá, pára de chorar, ainda me fazes zangar. Eu não me quero zangar, mas tu fazes-me zangar. A culpa é tua, sabes? És tão bonita. Se não fosses tão bonita... Vá lá, cala-te, CALA-TE... CALA-TE!
Eh, pequenina. Pequenina! Oh, merda, olha o que fizeste. O teu lindo cabelo, tão loiro e macio! Todo sujo e manchado de sangue. Vê o que fizeste! Acorda pequenina...
Porque é que não te calaste? Acorda, por favor. Não me deixes sozinho outra vez...

quarta-feira, 16 de maio de 2007

A verdadeira história da Branca de Neve

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Era uma vez uma menina chamada Branca de Neve (para que não haja surpresas, aviso já que, no que se refere a ela, ‘menina’ é um eufemismo!).

Era uma criança encantadora... quanto lhe faziam as vontades! Se alguém a contrariava, aí é que eram elas! Era dada a birras, ataques de mau-humor, a má educação...

A Branca de Neve era muito, muito bonita e muito, muito provocante. Desde cedo aprendeu a fazer uso da sedução em detrimento da argumentação. E era muito vaidosa! Passava horas ao espelho, a ensaiar olhares, poses, sorrisos... Adorava perguntar à sua imagem no espelho:
“Espelho meu, espelho meu, há mulher mais bonita do que eu?”

Como poderão deduzir, a Branca de Neve era bastante mimada. Era daquelas crianças filhas de pais separados, que sempre se habituou a manipular os adultos com complexos de culpa, que a enchiam de presentes para compensar a falta tempo e de atenção.

O pai da Branca de Neve era muito conhecido. Era mesmo uma figura importante na época, com programas de televisão, crónicas nos jornais, um ou outro livro editado, enfim,... era considerado uma figura de destaque do mundo da cultura!

E tinha imenso mérito. Conseguia fazer tudo isto, e convencer milhões de fãs dos vários quadrantes, sem nunca ter lido um livro, sem ter entrado numa sala de teatro, sem nunca frequentar um museu... O pai da Branca de Neve era o maior e melhor bluff da época, e, à semelhança da sua filha, fazia da sedução uma forma de vida... e fazia-o bem.

Um dia, o pai da Branca de Neve arranjou uma namorada. Não é que ele não aranjasse namoradas de quando em vez, era exímio nisso, mas elas não resistiam mais que uns meses... a Branca de Neve encarregava-se disso.

Mas desta vez ele estava apaixonado, e ela também. Estavam resolvidos a fazer com que a coisa resultasse, até marcaram casamento e tudo!

E por isso, a namorada encheu-se de coragem e decidiu-se a enfrentar a fera... que é como quem diz, a Branca de Neve (que entretanto era uma adolescente manipuladora e mal-homurada, que só queria sair à noite e chumbava anos consecutivos)...

A namorada era uma rapariga inteligente e determinada. Ou seja, tentou todas as técnicas possíveis: tentou ser amiga da enteada, tentou impor regras e limites, tentou castigar, tentou ignorar as má-criações, tentou oferecer-lhe presentes, tentou a abordagem psicológica...

A Branca de Neve também punha em prática várias estratégias com a madrasta... em frente ao pai, era encantadora com ela. Nas costas do pai, fazia-lhe a vida negra... e na sua ausência, envenenava o pai com mentiras acerca da perfídia da madrasta, que a mal-tratava e que tinha inveja da sua beleza e juventude...

O pai, apesar da sua fama de homem culto e interessante, não primava pela inteligência. Deixava-se levar pelas manobras da Branca de Neve e cada vez mais tendia a culpar a namorada pelos insucessos escolares e pela rebeldia da filha... Afinal, a garota estava traumatizada pelo divórcio dos progenitores e pelo novo casamento do pai!

No dia em que lhe telefonaram do Hospital a comunicar que a filha estava em coma, com uma overdose, o pai ficou em estado de choque.

A polícia informou-o que a ambulância tinha sido chamada por uns rapazes de má fama, ao que parece amigos da Branca de Neve. Segundo a polícia, a filha pertencia a um bando de marginais, claque de um grande clube de futebol e conhecido em todas as esquadras dos arredores como os ‘Sete Anões’ (não que fossem pequenos, a alcunha referia-se mesmo à envergadura dos seus escassos neurónios!).

O pai ia tendo uma apoplexia! Separou-se da madrasta na hora, porque a menina, coitadinha, estava mesmo muito traumatizada!

Como vaso ruim não quebra, a Branca de Neve safou-se da overdose. E de caminho, engatou o jovem médico que tratou dela, um romântico incurável seduzido pelo ar ingénuo da Branca de Neve e por um sentido de missão: tirar aquela jovem das más vidas e más companhias.

Já a Branca de Neve, arrumado o caso “madrasta”, estava pronta para novos desafios na vida... e o caso “príncipe encantado”, leia-se jovem médico incorruptível, vinha mesmo a calhar...

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Os Dentes

Ilustração do Tacci, do Portugal Caramba!


Aos seis anos já sou grande,
Já não sou um bebezola,
Já tenho dentes dos novos,
Já tenho de ir à escola.

Hoje caiu-me mais um dente,
Que já estava a abanar,
Estou mesmo desdentado,
É a idade a aumentar.

Vou pôr o dente na cama,
Debaixo da almofada,
Vou esperar pela moeda,
Que me deixará a Fada.

A Fada dos Dentes vem,
À noite na escuridão,
Dá dinheiro pelo dente,
Já me deu um dinheirão.

Gosto muito de perder,
Os dentes de pequenito,
Estou mesmo mais crescido,
Mais esperto e mais bonito.

domingo, 29 de abril de 2007

A verdadeira história do Lobo Mau

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Era uma vez um lobo já velhote, Crispim de seu nome, de alma simples e pacata, dedicado à contemplação e à meditação. Trocando por miúdos, do que o Crispim gostava era de paz e sossego, de se sentar à lareira nas noites de inverno, ou à soleira da porta nas tardes de verão, e deixar o tempo escorrer entre conversas calmas e pensamentos profundos. Para além disso, o Crispim era um lobo com elevados valores estéticos (que é como quem diz, com bom gosto!), a quem chocava e deprimia o espectáculo da caça e das carnificinas, acompanhado, como era de esperar, de muito sangue e muita gritaria.

Assim, e após uma juventude de predador relutante, o lobo Crispim retirou-se dessas andanças e converteu-se ao vegetarianismo. Dedicou-se à sua horta e entristecia-o ver como os seus camaradas lobos continuavam caçadores natos, não se importando rigorosamente nada com os sentimentos das suas presas. O Crispim bem tentou converter a restante matilha mas não teve sorte nenhuma. Para sermos totalmente honestos, devemos confessar que publicou, até, um livro de receitas vegetarianas [1], mas com muito pouco sucesso na comunidade dos lobos.

Como é de calcular, esta atitude na vida tinha afastado muita gente do Crispim. É que os lobos, como as restantes pessoas, não gostam demasiado daqueles que decidem ser diferentes. Por isso, era muito habitual o Crispim andar sozinho e ser gozado pela miudagem da vizinhança.

De entre a malta lá do bairro havia três jovens delinquentes particularmente maus para o Crispim: os três porquinhos. Sempre que encontravam o Crispim na rua, os três porquinhos rodeavam-no e começavam a cantar:
- Quem tem medo do Lobo mau, lobo mau, lobo mau...
E pregavam rasteiras ao Crispim, atiravam-lhe porcarias, cuspiam-lhe, enfim, faziam todas as maldades que queriam. E o Crispim tentava não se zangar.

Os três porquinhos eram três jovens de má fama lá no bairro, sempre à procura de proeminência. E, para mal dos pecados dos seus vizinhos, tinham conseguido alguma fama nos media uns anos atrás, devido à boys band “Chiqueiro”, da qual eram os vocalistas. Quando a época das boys bands passou, os três porquinhos aumentaram a sua notoriedade ao participarem num reality show em que os famosos expunham o seu pior em directo e ao vivo para deleite dos seus concidadãos. Mas o público andava já um pouco saturado dos reality shows e, além disso, os porquinhos depressa foram expulsos pelos colegas devido ao mau feitio e à badalhoqueira.

Assim, não é de admirar que os nossos três porquinhos andassem um pouco enervados com a falta de destaque nas revistas do jet set.

Foi devido a este momento particularmente complicado da vida dos três porquinhos que aconteceu o incidente que a seguir iremos relatar: os porquinhos estavam ociosos na esquina, à espera de qualquer coisa que os distraísse. E o Crispim teve o azar de passar ali pela rua naquele momento. Em suma, estava no sítio errado na altura errada! Quando viram passar o Crispim, os porquinhos pensaram:
- Ora cá está o tonto do lobo! Agora é que nos vamos divertir!
E assim foi: os porquinhos divertiram-se! Encurralaram o Crispim num beco escuro, deram-lhe uma sova, e acabaram arrastando o desgraçado lobo para casa, onde lhe escaldaram o rabo com água a ferver.

Quando o pobre Crispim conseguiu sair de casa, três dias depois, foi apresentar queixa às autoridades. Os porquinhos tinham ultrapassado todos os limites do tolerável, até mesmo para o Crispim, que não gostava de se chatear. Quando se soube lá pelo bairro da iniciativa do Crispim, houve mais gente que se armou de coragem e denunciou os três porquinhos por maus-tratos, abuso de poder, violência, distúrbios, et coetera.

As autoridades investigaram o caso. Mas, não se sabe exactamente como, houve fugas de informação e depressa o caso passou para a comunicação social, onde foi explorado até à exaustão, não fossem os três porquinhos figuras públicas da época. Elaboraram-se debates, entrevistaram-se os vizinhos, as celebridades foram chamadas a dar opinião... enfim, foi um acontecimento social!

E, de acordo com a mentalidade então reinante, exerceram-se pressões junto a quem de direito e demitiram-se alguns membros demasiados atrevidos das autoridades. Concluindo, a investigação foi discretamente encerrada por falta de provas.

Claro que, se a nível oficial as coisas decorreram com esta simplicidade, já na esfera das influências privadas as coisas tiveram outros desenvolvimentos. Alguns jornalistas foram devidamente recompensados pela sua pronta intervenção na disseminação de boatos difamadores do carácter do Crispim. E algumas figuras obscuras na época aproveitaram a ocasião para se lançarem na ribalta, prestando falsos testemunhos acerca da ferocidade daquele lobo hediondo que, embora tentando vestir a pele do cordeiro, não enganava ninguém. O caso mais flagrante, cuja fama perdura até aos nossos dias, é o do Capuchinho Vermelho, que se sagrou herói salvando a sua imaginária avozinha das garras do carniceiro Crispim.

E foi assim que os três porquinhos conquistaram a imortalidade, constando nas histórias que passam de geração em geração como os inocentes que ludibriaram o lobo mau e lhe deram o devido castigo, maldoso quantum satis mas principalmente ridículo, um escaldão no rabo.

E foi assim que o Crispim, lobo vegetariano e de tendências pacifistas, espancado e escaldado por delinquentes juvenis, ficou para a posteridade como o terrível Lobo Mau, personagem central de inúmeras histórias infantis e, irremediavelmente, dos pesadelos das nossas crianças.

[1] “Vegetais para Carnívoros” de Crispim Lupus, da Editorial Fictícia.

terça-feira, 17 de abril de 2007

A Casa do meu Avô

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!


Eu tenho um avô velhinho,
Que mora lá na aldeia,
Vive lá sempre sozinho,
Com um cão de cara feia.

Da casa vê-se o comboio,
Que passa a serpentear,
Vê-se os montes e as vinhas,
E a mãe diz que há bom ar.

Gosto muito daquele cão,
É feio mas é um querido,
Corre e pula e desafia,
Quer sempre brincar comigo.

Posso andar sempre na rua,
Tenho muita liberdade,
Não tenho de estar em casa,
Como tenho na cidade.

Ando à solta pelos campos,
Já nem da cidade sou.
Gosto muito de lá ir,
A casa do meu avô.

---
PS: Este é dedicado ao Avô Velhinho e ao Cão de Cara Feia.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Perguntas difíceis

.....- Olá, pai. Onde é que estás? – perguntou ela, do outro lado dos quilómetros infindos que os separavam e de um barulho que dificultava seriamente a comunicação.
.....- Ainda estou no trabalho, querida.
.....- Mas hoje é Domingo, pai! Ninguém trabalha.
.....- Eu sei, querida, mas o pai tinha umas coisas para fazer. Mas já acabei. E tu, o que estás a fazer?
.....- Estou na festa. A Mãe e o Carlos fizeram uma festa e está cá montes de gente. É giro, sabes?
.....- Ainda bem. Diverte-te.
.....- Pai... tu não gostas da mãe?
.....- Que disparate, querida, claro que gosto da mãe.
.....- A mãe também diz a mesma coisa, que gosta de ti. Porque é que vocês já não estão casados?
.....- Ó filha, sei lá. Tu fazes cada pergunta... Olha, tu tens amigos lá na escola?
.....- Sim.
.....- E namoras com eles?
.....- Não. Só com o Duarte.
.....- Namoras com o Duarte? Não me tinhas contado.
.....Ela deu uma risadinha do lado de lá do telefone:
.....- Ele está sempre a querer dar-me beijinhos e eu fujo dele. Às vezes bato-lhe, e ele também me bate. Mas às vezes brincamos e eu dei-lhe o meu anel cor-de-rosa com o coração. Sabes qual é? É um anel de casamento, sabes? A gente vai casar quando for grande. E ele fez-me um desenho cheio de corações, muito lindo.
.....- Então estás a ver, já começas a perceber. Mesmo com os namorados, mesmo se gostamos deles e queremos casar com eles, às vezes brigamos, não é?
.....- É.
.....- E tens outros rapazes amigos além do Duarte?
.....- Claro.
.....- E gostas deles, assim só como amigos, não gostas?
.....- Gosto.
.....- Então é mais ou menos como a mãe e eu. Nós gostamos um do outro como amigos, estás a ver? Mas quando experimentámos namorar, passávamos o tempo à bulha. Assim como tu e o Duarte. Estás a perceber?
.....- Quer dizer que eu tenho de me separar do Duarte?
.....Foi a vez do pai dar uma risada, disfarçada para não a ofender:
.....- Querida, tu ainda és muito nova. Ainda faltam muitos anos para te casares, e provavelmente vais ter muitos namorados até lá. Se continuares a gostar do Duarte durante esse tempo, então acho que não vais ter de te separar.
.....- ‘Tá bem. Mas eu gostava que tu e a mãe ainda estivessem casados.
.....- E o Carlos? Não gostas dele? Se nós estivéssemos casados não conhecias o Carlos nem vivias com ele, não era?
.....Uma das coisas que mais lhe custava era a excelente relação que o seu substituto tinha com a filha. A garota adorava o padrasto o que, racionalmente, deixava o pai muito feliz mas que, emocionalmente, lhe partia o coração. Fazia gala em afirmar que prezava o bom ambiente familiar que a ex-mulher conseguira criar para si e para a filha, mas na verdade detestava essa felicidade tranquila que tinham conseguido sem si.
.....- Era.... – a garota ficou um segundo pensativa. – O Carlos é fixe, mas preferia viver contigo, mesmo assim.
.....- Ó querida, eu também preferia ter-vos comigo, mas as coisas às vezes não acontecem exactamente como nós queríamos, sabes?
.....- Sei. Eu queria a bicicleta da Barbie mas a mãe e o Carlos compraram-me uma vermelha, do Declatlon.
.....- Não foi o Pai Natal que te trouxe a bicicleta?
.....- Ó pai! Eu sei que o Pai Natal não existe, OK! Já não sou uma bebé. Sei perfeitamente que o Pai Natal é o Tio Pedro mascarado, OK? – refilou ela, do alto dos seus sete anos recentemente completados.
.....- Pronto, desculpa.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

O Livro

Antes de adormecer,
Gostamos de ouvir contar
Uma história bem bonita
Com que possamos sonhar.

A mãe lê-nos belos livros
À noite, antes de deitar
Sentamo-nos no sofá
E ficamos a escutar.

Aventura ou poema
Com uma bela ilustração
Há lá coisa mais bonita
Para a nossa imaginação?

sábado, 31 de março de 2007

A Alma

Ilustração retirada de YACIN the FAUN
***
Eu tenho um grande mistério,
Que não posso compreender,
Dizem que eu tenho uma alma,
Que eu não consigo ver.

Eu cá nunca vi a alma,
E também nunca a cheirei,
Nunca lhe escutei a voz
E nem sequer lhe toquei.

Dizem que todos a temos
E que a alma é bem bonita,
Mas onde é que ela se esconde,
Essa alma tão esquisita?

Dizem que com a alma sinto
Amor, carinho, amizade,
Raiva, zanga e ciúme,
O medo, a dor e a saudade.

Dizem que com a alma voo,
Como um pássaro a planar,
Eu não vejo quaisquer asas,
Onde é que as vou procurar?

Dizem que com a alma crio,
Histórias e palhaçadas,
Desenhos e brincadeiras,
As coisas mais engraçadas.

Esta alma é muito estranha,
Bem difícil de entender,
O que vale é que me dizem
Percebo quando crescer.

quarta-feira, 28 de março de 2007

O jardim da minha infância

Foto da Ana, do Simples Sopros

No meu bairro existia um jardim, meu terreiro de jogos durante a infância. O Jardim não era nada por aí além. Não passava de um quarteirão, com canteiros e algumas árvores, um coreto e um laguito com patos, um escorrega e dois baloiços. E, claro, muitos bancos soalheiros onde as velhotas faziam tricô enquanto os maridos, igualmente velhotes, jogavam à bisca instalados nas velhas mesas pintadas de verde, já a descascar aqui e ali.
Apesar de modesto, nós adorávamos o nosso jardim. As árvores eram centenárias, com vastos troncos e folhagem densa. Uma em particular era muito convidativa, os seus ramos acomodavam-nos facilmente. Uns dias nave espacial, noutros barco de piratas, às vezes casa de bonecas ou covil das feras, a árvore pertencia-nos e a tudo se moldava.
No Inverno, quando a chuva enchia o chão de poças e a árvore se encontrava molhada e desconfortável, os ramos pingando frias gotas que se enfiavam pelas golas e nos arrepiavam como dedos gelados, assentávamos arraiais no velho coreto gasto pelos anos que, enfeitado com as cores da imaginação, atingia dimensões de castelo invencível, palácio de princesas ou reduto das bruxas.
Nas traseiras do jardim, no quarteirão que com ele marginava, existia um morro coberto de matos e lixo, no cimo do qual outrora se erguera um prédio que ruíra anos antes. Dele sobrava ainda uma parede, por ser comum a dois prédios, o que ruíra e outro que resistia, ainda incólume. E nessa parede, expostos ao olhar de quem passasse, viam-se ainda cores desbotadas, azulejos de casa de banho, testemunhos silenciosos de melhores tempos. Até uma sanita, lá no terceiro andar, enfrentando chuva e sol e vento cortante sem dar mostras de querer ceder, se expunha ao olhar do mundo.
Para nós, miúdos, o jardim prolongava-se para as traseiras, englobando o morro e as ruínas no nosso campo de brincadeiras. Ali éramos bravos exploradores trepando o Monte Evereste, arqueólogos investigando relíquias de civilizações passadas, índios preparando astutas emboscadas aos cowboys ou polícias em perseguição de um bando de perigosos assaltantes. Ali eles éramos reis e senhores de um mundo fértil e rico de aventuras.

A MINHA MÃE

Ilustração de Tacci (Portugal, Caramba!)


Debaixo da cama
Tenho um lobo mau
E no meu armário
Vive um animal.

Mas no quarto ao lado
Dorme a minha mãe
Que guarda o meu sono
Como mais ninguém.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Revisão Ortográfica

Sabendo nós que a língua portuguesa é uma língua viva e, logo, em constante evolução, não é de estranhar que, de tempos a tempos, seja necessária uma revisão ortográfica e fonética dos termos oficialmente considerados “correctos”.
Assim, venho deixar à vossa consideração algumas sugestões respeitantes à conjugação verbal que penso serem pertinentes na próxima revisão da língua portuguesa:
1. Proceder à correcção definitiva da 1ª pessoa do plural do presente do conjuntivo. Como toda a gente sabe, este tempo verbal é uma palavra esdrúxula (se não sabem o que isto é, vão ver ao dicionário!). Há para aí a mania de corrigir o póssamos, tênhamos ou fáçamos (claro que escrevemos sem acentos, porque isto dos acentos, também, só serve para atrapalhar!). De resto, no que respeita à ortografia, lanço um desafio de debate que se prende com a presença ou ausência de hífen (para quem isto é estrangeiro, eu simplifico: póssamos ou possa-mos, eis a questão! Há ainda alguns dissidentes que sugerem o poça-mos ou o póçamos, mas parecem-me menos consensuais).
2. Já no que respeita à 2ª pessoa do plural, de qualquer tempo que vos agrade, proponho a sua simples abolição. Assim como assim, já é “latinório”, de uso exclusivo em igrejas por padres adequadamente conservadores. Passo a explicar: substituímos simplesmente o desagradável “vós ides” pelo tão simpático e familiar “vocês vão”.
3. Adopção, como regra constante de todas as gramáticas abençoadas pelo ministério da educação, do pronome “a gente” (não confundir com agente, que é da polícia!) como sinónimo de “nós”. Teríamos “a gente vai” ou, ainda, “a gente vamos”, expressão tão querida do nosso povo português.
4. Outra: que mania esta de tirar o “s” ao “fostes”, ao “dissestes” ou ao “comestes”! Então se é vais, dizes, comes, por alma de quem é que temos essa esquisitice do foste! Eu cá voto no fostes!
5. Por fim, não esquecer a simplificação do “há” e “à”. Só mesmo no português, confundir assim as pessoas. Proponho que se substituam ambos por “á”, eliminando as dúvidas existenciais, quando as há (ou à?), de qual deles usar. Assim, corrigiríamos de uma assentada milhares de “Hoje á caracóis” espalhados por outras tantas tascas portuguesas.

sábado, 24 de março de 2007

D. Alice

A D. Alice limava as unhas e olhava distraída pela janela, aguardando a polícia. É verdade que estava abananada. Ver o Engenheiro naqueles preparos, com as goelas cortadas, não era fácil. Mesmo sendo uma mulher de armas, com eles no sítio, a D. Alice quase entrara em pânico. Estivera mesmo para sair desabalada porta fora e deixar tudo tal como estava. Sabia lá ela se o matador ainda por ali andava, à espera de cortar o gorgomilo a mais alguém? O melhor era não esperar para ver!
Mas depois o bom senso imperara. Não é que a D. Alice fosse muito instruída, é verdade que só tinha a quarta classe, mas não era por isso que era mais burra. E tinha as coisas dela todas espalhadas, não podia sair assim com tudo desarrumado. Ainda diziam que a matadora era ela, querem lá ver! E depois, a D. Alice já dera a volta ao escritório todo, estava mesmo no fim do trabalho. Se o matador por lá andasse, já tinha dado cabo dela há montes! Não, ele já se devia ter posto a milhas.
Por isso, a D. Alice lá se enchera de coragem e telefonara para o 112. Tinham-lhe feito centenas de perguntas. Tivera de explicar tudinho: que o Sr. Engenheiro estava mesmo muito morto, com a garganta cortada e tudo; que sim, ela estava sozinha; que não, não tocava em mais nada; que era ali na rua dos correios, ao pé da bomba de gasolina; e que se despachassem que ela tinha de ir para casa dar o almoço à neta; sim, ela esperava, mas despachem-se.
E a D. Alice ficara à espera, o telefone ainda na mão. Mas depois pensara: já que ia esperar, ao menos que se fosse arranjando, não precisava de receber os polícias de bata e chinelos! Quem sabe se lhe enviavam assim um cinquentão ainda jeitoso! A D. Alice voltara a calçar as botas à cavaleiro, aquisição recente na feira do Relógio, deixando à vista um pedaço de coxa entre o cano e a mini-saia. Mirara-se no espelho. Até não estava mal, quarenta e seis anos feitos e parecia uma cachopa, quem dera a muitas! Se não fossem os dentes... mas ainda havia de juntar dinheiro para uma dentadura, isso é que havia! Mas também, com duas filhas e uma neta a cargo, como é que ela podia fazer economias, hã?

A D. Alice despegou os olhos da janela e relanceou um olhar para o corredor. E aqueles dois não havia meio de se despacharem, caraças! Ficara tão contente com a chegada deles, achara que agora já podia ir para casa! Afinal não, ainda queriam falar com ela. Ia chegar atrasada e a filha ia desancá-la, de certezinha que a ia desancar. Quando é que a deixavam ir à vida dela, que raio!

Fim de Ano

(...)
Uma hora depois, já no Bar do Chico e com um whisky duplo por única companhia - o Chico tinha o bar a abarrotar e não tinha mãos a medir nem tempo para as calmas conversas habituais – o Matias remoera, mais uma vez, as mágoas pela sua relação falhada, pela traição da mulher com o amante banqueiro (o Carlos, que agora se armava em pai da sua menina), pelo orgulho ferido e nunca confessado. Para o mundo o divórcio fora de mútuo acordo, a traição calada e nunca discutida. E ele fora o marido ideal, concordando com tudo e facilitando os processos, as partilhas e a custódia da filha. Ficara amigo da ex-mulher, falavam-se com frequência e viam-se às vezes, quando a miúda passava uns dias com o pai. Ninguém suspeitava, a ex-mulher menos que todos, o quanto tudo aquilo o ferira, o quanto continuava ferido. Porque, muito antes do banqueiro, muito antes da traição, já o casamento andava mal, já a intimidade desaparecera e a distância se instalara. Já as conversas se tinham extinguido, deixando apenas os pequenos diálogos utilitários do dia-a-dia. Já o Matias passava mais e mais tempo no trabalho, entregue aos deveres profissionais, e ela mais e mais tempo de volta do emprego e da filha. O amante fora um sintoma, não a causa do fim. E o Matias sabia-o, como a ex-mulher o sabia. O que ela não sabia, nem nunca saberia, era quanto aquilo o magoara, quanto ele quisera transpor a distância, restabelecer a relação, e quão impotente fora para isso, vendo o casamento desmoronar-se contra a sua vontade.
Sozinho com as suas dores, sem o Chico para o distrair, sem se querer deitar antes da meia-noite e da passagem do ano, o Matias abusara dos whiskys e do tabaco.
Agora, o insistente despertador dizia-lhe que já não caminhava para novo, e que os excessos se pagavam no corpo. Com a cabeça a latejar, o Matias preparou uma cafeteira de café e duas aspirinas, e sentou-se a vegetar, à espera que eles produzissem o esperado efeito de voltar a conferir ao mundo dimensões suportáveis.