domingo, 3 de junho de 2007

Soube assim que te vi

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Soube assim que te vi. Estavas parada, sozinha na multidão, e nem me notaste. Entraste no autocarro, à minha frente, e eu, hipnotizado, segui-te até lá ao fundo. Tu nem me viste mas eu, eu aspirei esse teu perfume, doce e inebriante, distinto no meio de tantos odores. E soube. Soube que eras tu.
Segui-te. Desci na paragem, logo atrás de ti. E vi-te andar, como quem não tem pressa, atravessar o jardim e entrar naquela porta. A tua porta.
Nessa noite sonhei. Vi o teu perfil, o teu pescoço alto, elegante e levemente inclinado pelos balanços do autocarro. Esse teu pescoço, tão bem delineado, feito para ser acariciado. Sabes que eu gosto de pescoços. Gosto de lhes tocar, de os acariciar, de sentir a vida a palpitar neles. E o teu é tão esbelto, tão suave....
Soube que não teria descanso, que tinha de te voltar a ver, que tinhas de ser minha. E esperei-te, noite após noite, naquela paragem. Noite após noite apanhei o teu autocarro, sentei-me atrás de ti, imaginando esse teu delicado pescoço nas minhas mãos, torneando-o, afagando-o, pressionando-o. Noite após noite atravessei o jardim, na tua sombra, amando-te em silêncio. E fui feliz porque tu, sempre alheada das realidades, nunca me viste, nunca reparaste. Fomos felizes, tu e eu.
Mas tu, tu tinhas de estragar tudo. Não te bastava seres amada, eu não te chegava. Tiveste de arranjar esse tipo. Esse tipo nojento, que te acariciou e te beijou, te conspurcou e te profanou. No nosso jardim! A mão dele, pousada no teu pescoço!
O pensamento é insuportável! Não o podia permitir! Nunca mais, nunca mais ninguém tocará nesse teu pescoço. É meu, não permito que ninguém lhe toque. Finalmente posso senti-lo, posso tocar-lhe, rodeá-lo com os meus dedos. Sinto a vida sob os dedos, ceder ante a pressão. Sinto a vida a palpitar, mais e mais devagar, sinto-te a abandonares-te a mim. E vês-me, finalmente vês-me. Olhas-me, finalmente, olhos nos olhos. Sabes que eu existo e tens medo. Serei a última coisa que vês. E sabes, eu sempre soube. Assim que te vi, soube que ias ser minha.

4 comentários:

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Sabes, Hainnish, estas tuas histórias fazem-me lembrar Tim Burton. Pode parecer descabido assim falar, mas a verdade é que também com os teus textos consegues aquele clima muitíssimo especial em que se consegue transmitir a sensação do belo através de coisas que nos fazem arrepiar.
Gostei bastante desta short story e sobretudo acho bastante interessante a solução encontrada para o final que, a meu ver e na modéstia dos meus conecimentos, está claro, seja como for, digo que a escolha que fazes para finalizar a história tem um toque de mestre pois ao deixar em aberto o que se passará a seguir, faz com isso a manipulação do Leitor que de uma aparente história de amor é deixado à deriva naquilo que pode compor como um caso negro.
E como estive fora a semana que passou e só agora volto aqui, deixa que te diga que me encantam as quadras que apresentas na forma de carinho que dás ao futuro, para que ele cresça sólido e bonito.

Tudo de bom para ti, Hainnish

Luís

Hainnish disse...

Luís:

Obrigada pelas suas palavras. Se não tomo cuidado ainda fico vaidosa. Essa comparação com o Tim Burton, ainda que completamente imerecida, pode fazer-me mal ao ego. O Tim Burton é um dos meus realizadores preferidos e o ‘Nightmare before Christmas’ é certamente um dos meus filmes de culto.

Um abraço.

A. Jorge disse...

Gosto do que escreves. Consegues "agarrar" o leitor e obriga-lo a ler até ao fim.
Está optimo!

Abraço

Jorge

http://vagabundices.wordpress.com/

Hainnish disse...

Jorge,

obrigada pelas tuas palavras. Ainda bem que gostaste. Volta sempre.

Um abraço.