sábado, 23 de junho de 2007

Não voltarei



Contemplo a casa. Enorme, desmesurada, repleta de vazio e silêncio. Descabida. Foi, um dia, a minha casa. Casa dos meus pais, dos meus avós, de inúmeras gerações antes deles. A nossa casa.

Hoje dela restam quatro paredes, esburacadas qual boca cariada. As janelas abrem-se para o vazio, olhos cegos ao mundo.

Entro. Os fetos crescem, por todo o lado. Da segunda janela da esquerda, onde um dia foi o meu quarto no inacessível primeiro andar, uma animada ramada de mimosa espreita a rua, incongruente no seu amarelo vivo. Ali está, a casa da minha infância, onde passei férias encantadas na companhia dos meus avós.

Recordo a avó, pequenina e engelhada, a cara viva e os olhos brilhantes reflectindo as labaredas do fogo. Aterrorizava-me com as peripécias das antepassadas bruxas. Depois, vendo-me transida de medo, consolava-me com abraços rápidos e enormes nacos de pão barrados com compotas caseiras. Ensinava-me as tradições da família, dizia, preparava-me para assumir a herança de uma estirpe de grandes bruxas, da qual ela era a orgulhosa representante e eu a semente futura.

Recordo o avô, grande e calado, deixando as despesas da conversa com a avó. O seu refúgio era o seu bote a remos, no qual passava os dias fumando cigarros e ensinando-me a pescar.

Nunca mais os vi. Não sei o que lhes aconteceu. Desapareceram completamente, sem deixar rasto. Quando voltámos, quando nos foi permitido voltar, já cá não estavam. Nem eles nem ninguém que os tivesse jamais conhecido. Desapareceram pura e simplesmente, como se nunca tivessem existido.

E a casa neste estado. Há um buraco em particular que atrai o meu olhar. Não sei porquê, é igual aos outros todos, aos inúmeros buracos que enfeitam a nossa parede. Sem dúvida buracos de bala.

A custo desprendo o olhar do buraco, da parede. Percorro a casa. Só o rés-do-chão, claro, do andar de cima não resta nada. Com alguma apreensão, confesso. Recordo os avisos, omnipresentes, para não penetrar nas ruínas de guerra. Quem sabe o que ainda ali haverá? A velha lareira ainda cá está. De pé. Encosto-me a ela e pergunto: o que terá sido feito deles? Como terão morrido? O avô que me ensinou a pescar, a avó que me deslumbrava com as antepassadas bruxas? Terá sido rápido?

Encosto-me à lareira e procuro dentro de mim. Não sinto nada. Não voltarei.

domingo, 10 de junho de 2007

A verdadeira História da Carochinha

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!


Uma certa manhã, que é como quem diz, um certo après-midi, a Carochinha acordou com uma forte dor de cabeça e a boca a saber a papel de música, fruto de mais um dia, isto é, uma noite de labuta.

De mau humor, que isto não é vida!, deteve-se a contar as suas poupanças para se reformar daquelas andanças. Mas as economias eram escassas, que as coisas estão duras mesmo para os trabalhadores mais dedicados.

Mas a Carochinha era uma rapariga industriosa! Afinal, nem toda a gente é capaz de largar o país, a casa, a família, deixar tudo para trás e vir à aventura, em busca da sorte e da fortuna! A Carochinha era uma rapariga de iniciativa e sabia-o.

E depois, tinha aquele corpito que Deus lhe deu, e a carinha laroca, que bem lhe tinham valido para se safar na vida. Enfim, ao menos não andava na rua como umas e outras que conhecia! No bar os clientes eram gente elegante e endinheirada, ofereciam prendas e pagavam copos. Não é que não fossem uns porcos, lá nisso são todos iguais, os homens não podem ver um rabo de saia! Mas ganhava-se a sério, massa da grande. E não se apanhavam tareias!

Mas pronto!, ainda assim! O que é de mais é de mais, e depois, a Carochinha sabia que não caminhava para nova. Ainda era bonita, ainda era desejável, mas os anos não param e em breve deixaria de o ser.

Neste estado de espírito, tomou uma decisão: estava na hora de procurar marido. Requeria-se que fosse bem abastado, bem apessoado e bem apetrechado, que a Carochinha queria reformar-se mas não tanto.

Sentou-se à secretária, lápis em punho, e dedicou-se à difícil tarefa de alinhavar duas palavras inteligíveis por terceiros. Depois de muito suar e desesperar, produziu a seguinte obra-prima, da qual muito se orgulhou:
“Mulher jovem, bonita e com posses procura cavalheiro bem na vida para relação séria e futuro compromisso.”
Feliz, consigo própria e com uma tarefa bem realizada, a Carochinha mirou-se no espelho e perguntou-se:
- Quem quer casar com a Carochinha, que é airosa e formosinha?
E preparou-se para seleccionar pretendentes.

Nos dias seguintes a Carochinha não teve mãos a medir. Os pretendentes afluíram e a todos ela entrevistou. Até tirou a semana de férias!

Mas os rapazes foram uma desilusão. Uns eram jeitosos mas não tinham fortuna, outros tinham dinheiro mas eram gordos, uns eram bem falantes mas tinham voz de cana rachada, outros tinham uma voz de cantor de ópera mas só diziam ordinarices… enfim, uma desgraça! A todos a Carochinha rejeitava, em todos descobria defeitos.

Já a Carochinha desesperava, prestes a desistir, convencida a permanecer solteira para todo o sempre, quando lhe apareceu o João Ratão. Foi amor à primeira vista! A Carochinha ficou deslumbrada.

O João Ratão era um pintas ali do bairro, bonito como ele só, com elegância natural e charme para dar e vender. E muito, muito bem-falante! Fazia profissão de seduzir senhoras solitárias, que lhe pagavam a companhia e outros préstimos. Era um bocado fala-barato, há que confessar em abono da verdade, e um charlatão de primeira, mas era encantador e um bon-vivant. E a Carochinha apaixonou-se irremediavelmente.

Marcaram o casamento num prazo recorde. A Carochinha, convencida de que tinha arranjado herdeiro rico – o João Ratão disse-lhe que era filho de latifundiários ali da Lezíria do Tejo - nem acreditava na sua sorte. E o João Ratão, convencido de que casava com uma esposa abastada, para além de bonita, preparava-se para se dedicar aos seus verdadeiros interesses na vida: mulheres, toiros e vinho.

O resultado era óbvio: escassos três meses após o casamento já os esposos se tinham desenganado. E a paixão assolapada, tão rápida a despontar, foi igualmente rápida a converter-se em ódio assolapado.

Porque o João Ratão, frustrado com a escassez das economias da Carochinha, não parava em casa e, quando aparecia, era para confiscar os ganhos da esposa e para lhe arriar um sopapo por outro.

E a Carochinha, os sonhos de grandeza desfeitos, não só não se reformara como ainda sustentava o João Ratão.

No dia em que a Carochinha deu entrada no Hospital, estadia patrocinada pelo João Ratão, uma queda das escadas segundo a versão oficial, tomou a sua segunda grande decisão: estava na hora de se livrar do marido!

O João morreu na noite em que os esposos comemoravam cinco meses de casados – uma congestão no banho, segundo a versão oficial. Nem queiram saber a versão real!

domingo, 3 de junho de 2007

Soube assim que te vi

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Soube assim que te vi. Estavas parada, sozinha na multidão, e nem me notaste. Entraste no autocarro, à minha frente, e eu, hipnotizado, segui-te até lá ao fundo. Tu nem me viste mas eu, eu aspirei esse teu perfume, doce e inebriante, distinto no meio de tantos odores. E soube. Soube que eras tu.
Segui-te. Desci na paragem, logo atrás de ti. E vi-te andar, como quem não tem pressa, atravessar o jardim e entrar naquela porta. A tua porta.
Nessa noite sonhei. Vi o teu perfil, o teu pescoço alto, elegante e levemente inclinado pelos balanços do autocarro. Esse teu pescoço, tão bem delineado, feito para ser acariciado. Sabes que eu gosto de pescoços. Gosto de lhes tocar, de os acariciar, de sentir a vida a palpitar neles. E o teu é tão esbelto, tão suave....
Soube que não teria descanso, que tinha de te voltar a ver, que tinhas de ser minha. E esperei-te, noite após noite, naquela paragem. Noite após noite apanhei o teu autocarro, sentei-me atrás de ti, imaginando esse teu delicado pescoço nas minhas mãos, torneando-o, afagando-o, pressionando-o. Noite após noite atravessei o jardim, na tua sombra, amando-te em silêncio. E fui feliz porque tu, sempre alheada das realidades, nunca me viste, nunca reparaste. Fomos felizes, tu e eu.
Mas tu, tu tinhas de estragar tudo. Não te bastava seres amada, eu não te chegava. Tiveste de arranjar esse tipo. Esse tipo nojento, que te acariciou e te beijou, te conspurcou e te profanou. No nosso jardim! A mão dele, pousada no teu pescoço!
O pensamento é insuportável! Não o podia permitir! Nunca mais, nunca mais ninguém tocará nesse teu pescoço. É meu, não permito que ninguém lhe toque. Finalmente posso senti-lo, posso tocar-lhe, rodeá-lo com os meus dedos. Sinto a vida sob os dedos, ceder ante a pressão. Sinto a vida a palpitar, mais e mais devagar, sinto-te a abandonares-te a mim. E vês-me, finalmente vês-me. Olhas-me, finalmente, olhos nos olhos. Sabes que eu existo e tens medo. Serei a última coisa que vês. E sabes, eu sempre soube. Assim que te vi, soube que ias ser minha.