domingo, 19 de agosto de 2007

Madame Rose III

A Mãe Joana era uma vasta preta grande e gorda, com um turbante colorido e uma escassa bata de trabalho que pouco escondia das coloridas capulanas com que se ataviava. Fazia a limpeza das enfermarias e tratava indiscriminadamente crianças, enfermeiras, doutores e outra fauna que por ali passasse por “Meu Anjo” ou “Meu Doce”. A Mãe Joana Preta, com um coração proporcional os seus 120 quilos de gente, condoeu-se da menina triste residente na Enfermaria 2 e tomou como tarefa sua distraí-la e instruí-la.
A Mãe Joana Preta, a mais improvável das companheiras, abriu novos horizontes na vida da Rosinha Silva. A Mãe Joana e os seus búzios, as suas macumbas e os seus maus e bons olhados. A Mãe Joana, íntima das almas boas e menos boas - e de algumas verdadeiramente maléficas - que povoam o além. A Mãe Joana Preta, contra todas as expectativas, conseguiu penetrar a couraça da Rosinha Silva e tomou-a como aprendiz e fiel depositária da sabedoria ancestral de que era portadora.
E assim se iniciou a educação da Rosinha, que revelou uma queda particular para estas ciências. Aos dez anos de idade a Rosinha tinha uma mente completamente lúcida. Sabia que a sua vida tinha mudado de rumo e percebeu a utilidade das novas valências. Pôs a sua arguta inteligência ao serviço da aprendizagem e rapidamente se tornou perita na decifração dos padrões dos búzios, das folhas de chá, e nas artes subtis da adivinhação. Absorvia os ensinamentos da Mãe Joana com avidez, e depressa leu uma mão como um livro aberto. Quando a Mãe Joana abandonava o Hospital para se dedicar aos outros afazeres (dava consultas durante as tardes) e as enfermeiras se encontravam ausentes, a Rosinha praticava as artes recém adquiridas nas outras crianças internas, manipulando os seus medos e dores com malevolência.
À medida que os meses foram passando e a Rosinha foi ficando pelo Hospital, o corpo deformado agarrado à cadeira de rodas, a sua maldade e dissimulação cresceram exponencialmente. Predizia destinos horríveis aos seus companheiros da enfermaria, tão mais cruéis quanto mais ligeira fosse a sua doença. Queria que todos sofressem o mesmo que ela.
As enfermeiras, pelo contrário, conheciam uma Rosinha doce e dócil, com tendência para se tornar a vítima da restante criançada. Uma Rosinha resignada cujo esqueleto, sabiam, ficaria deformado para sempre. Uma Rosinha que nem sonhavam ser um logro tão absoluto. Assim, sempre que algum novo residente se queixava da Rosinha, descobria da pior forma que ela era intocável, a mascote do corpo de enfermagem.

Quando, dois anos e nove meses volvidos, a Rosinha teve alta da Estefânia, deixou saudades à Mãe Joana e às enfermeiras. Não reconheciam a Enfermaria 2 sem a presença da menina coxa e vagamente corcunda que já pertencia à mobília. A Rosinha, pelo seu lado, também não reconhecia como lar o nº 6 da Travessa dos Inglesinhos. O Quim Zé quase não aparecia, namoradeiro como ele só, e a proximidade entre irmãos esfumara-se com os anos. A mãe Florentina, sempre apagada, fazia-se pequena na presença da filha, que era uma personalidade dominadora e malévola. A Gertrudes, que permanecera a amiga da Rosinha, rapidamente descobriu que era necessário um enorme tacto e um grande poder de encaixe para lidar com a adolescente rancorosa em que a Rosinha se transformara.
Mas a Rosinha sabia ser encantadora sempre que tal se afigurava compensador. De volta ao liceu feminino, depressa montou o negócio. Arranjou um baralho de Tarot e deitava as cartas em troca de presentes. Outras vezes lia a sina nas mãos das colegas. Moedas, doces, peças de roupa, lenços e laços, tudo a Rosinha aceitava. Vaticinava às colegas futuros risonhos, namoros e casamentos com rapazes de sonho, sucesso nos estudos às mais ambiciosas, que sonhavam seguir para a faculdade. De vez em quando lá dava o gosto ao dedo e predizia um acidente violento, um infortúnio ou uma morte precoce a alguma colega mais odiada, fingindo-se relutante e horrorizada com o destino. Descobriu uma nova forma de poder, com que muito se divertia. Conseguia pôr as moças mais crentes a fazer exactamente o que queria com conselhos judiciosamente administrados, gerindo a vida das colegas a seu belo prazer. E dava-lhe um enorme gozo ver as meninas do liceu feminino dançarem o fandango ao ritmo da Rosinha Silva.
Recolhia a informação discretamente. Afinal, tinha anos de prática de espionagem, apurada nas perseguições ao Quim Zé e nos corredores entre enfermarias, e um dom esmerado para ler nas entrelinhas, nos gestos e na linguagem corporal. Conhecia os sonhos e segredos de toda a gente e jogava com as ambições das interlocutoras. E divertia-se imensamente.
...
(Continua)

sábado, 4 de agosto de 2007

Madame Rose II

Mas o acontecimento que se veio a revelar decisivo, que marcou a metamorfose da pequena Rosinha Silva na Madame Rose, foi o advento que ficou, para a posteridade, como o ‘acidente’.
De pequenino o Quim Zé teve a incumbência de cuidar da irmã, devendo zelar pela sua segurança em todas as situações, substituindo-se ao pai ausente e à mãe apática. Mas com a entrada na adolescência, o Quim Zé deu por si a evitar por todos os meios a presença da irmã. Chamava-lhe a sua sombra, o seu apêndice, a sua carraça.
A Rosinha, furtiva de pequenina e ofendida no seu amor próprio, criou o hábito seguir e espreitar o Quim Zé. Assim descobriu os pequenos segredos do irmão, os primeiros arremessos da vida adulta: as beatas fumadas às escondidas, os primeiros bagaços na Leitaria do Ti Apolónio, as primeiras surtidas ao liceu feminino, a controlar a saída das meninas. Com o tempo a Rosinha foi acumulando uma sabedoria sobre o Quim Zé e a restante miudagem do bairro, sobre as suas actividades e segredos, que reservou para eventualidades futuras e que se veio a revelar de bastante utilidade.
Aconteceu numa tarde tórrida do princípio do Verão, à hora mais quente do dia, quando da Calçada do Combro se elevavam ondas de calor que distorciam a visão. Foi uma Rosinha de dez anos e tranças espetadas, irritada e afogueada pelo calor, seguindo o irmão pelas vielas do Bairro Alto e perguntando-se se não seria melhor esquecer, pelo menos por hoje, a sua perseguição, que cometeu o grande descuido da sua vida: deixou-se apanhar pelo Quim Zé e pelo Manel da Leitaria. O irmão agarrou-a pelo braço, os dedos mais apertados que um alicate, abanou-a com uma fúria transbordante e ameaçou, num rosnido:
- Se te apanho a espreitares-me outra vez, não queiras saber a sova que apanhas!
Não é que a Rosinha tivesse demasiado medo do irmão: o Quim Zé era assim, só fogo de vista, um daqueles cães irritantes que ladram mas não mordem. Um bluff, em suma. E a Rosinha sabia-o. Estava mais danada consigo, por se deixar apanhar, que amedrontada pela bravata do Quim Zé. Aproveitou um momento de maior frouxidão e safou-se do aperto, largando a correr para casa. Foi no momento em que se virou para trás, a meio da corrida, para gritar, num desafio:
- Ui, estou a morrer de medo. Tu és tão mau, tão mau...
que o carro a colheu e a atirou pelo ar, num voo planado de vários metros.
A Rosinha deu entrada no Hospital da Estefânia, onde ficou internada pelo exíguo período de dois anos e nove meses.

O irmão Quim Zé visitava-a amiúde, sentindo-se responsável pelo acidente. Mas com o passar do tempo a Rosinha, que sempre o culpou pelo acontecido, foi-se tornando arisca e agressiva, só espinhos sem rosas. E o Quim Zé, adolescente com assuntos prementes e inadiáveis em mãos, espaçou as vistas até se esquecer de aparecer por completo.
A mãe Florentina, pessoa dada a rotinas, visitava-a duas vezes por semana, às quartas e aos sábados. Era regular como um metrónomo e a mãe Joana Preta habituou-se a acertar o relógio da enfermaria pelas idas e vindas da Florentina. Instalava-se na cadeira à beira da cama, com o seu trabalho de costura, e deixava-se ficar, quase sem pronunciar palavra, até soarem as badaladas das cinco da tarde. Nessa altura guardava o trabalho na cesta, beijava a Rosinha na face e ia à sua vida vazia de significado. Mãe e filha pouco encontravam que dizer uma à outra.
A única visita que enchia de sol a vida da Rosinha, agora como sempre, era a Gertrudes da frente. Nunca se sabia quando viria: podia aparecer vários dias seguidos ou permanecer um mês desaparecida. Mas quando vinha, trazia a sua alegria esfuziante e a Rosinha perdoava-lhe prontamente as ausências. Esquecia o ódio negro que crescia no seu coração solitário, que alimentava nas longas semanas em que a Gertrudes faltava, e recebia a amiga com uma gratidão doentia. E a verdade é que, apesar da irregularidade das visitas, a Gertrudes nunca deixou de aparecer e de amimar a doente.
Do carro que atropelou a Rosinha Silva nunca se soube pormenores. Desapareceu pela calçada abaixo sem sequer olhar para trás.
.....
(Continua)