sábado, 4 de agosto de 2007

Madame Rose II

Mas o acontecimento que se veio a revelar decisivo, que marcou a metamorfose da pequena Rosinha Silva na Madame Rose, foi o advento que ficou, para a posteridade, como o ‘acidente’.
De pequenino o Quim Zé teve a incumbência de cuidar da irmã, devendo zelar pela sua segurança em todas as situações, substituindo-se ao pai ausente e à mãe apática. Mas com a entrada na adolescência, o Quim Zé deu por si a evitar por todos os meios a presença da irmã. Chamava-lhe a sua sombra, o seu apêndice, a sua carraça.
A Rosinha, furtiva de pequenina e ofendida no seu amor próprio, criou o hábito seguir e espreitar o Quim Zé. Assim descobriu os pequenos segredos do irmão, os primeiros arremessos da vida adulta: as beatas fumadas às escondidas, os primeiros bagaços na Leitaria do Ti Apolónio, as primeiras surtidas ao liceu feminino, a controlar a saída das meninas. Com o tempo a Rosinha foi acumulando uma sabedoria sobre o Quim Zé e a restante miudagem do bairro, sobre as suas actividades e segredos, que reservou para eventualidades futuras e que se veio a revelar de bastante utilidade.
Aconteceu numa tarde tórrida do princípio do Verão, à hora mais quente do dia, quando da Calçada do Combro se elevavam ondas de calor que distorciam a visão. Foi uma Rosinha de dez anos e tranças espetadas, irritada e afogueada pelo calor, seguindo o irmão pelas vielas do Bairro Alto e perguntando-se se não seria melhor esquecer, pelo menos por hoje, a sua perseguição, que cometeu o grande descuido da sua vida: deixou-se apanhar pelo Quim Zé e pelo Manel da Leitaria. O irmão agarrou-a pelo braço, os dedos mais apertados que um alicate, abanou-a com uma fúria transbordante e ameaçou, num rosnido:
- Se te apanho a espreitares-me outra vez, não queiras saber a sova que apanhas!
Não é que a Rosinha tivesse demasiado medo do irmão: o Quim Zé era assim, só fogo de vista, um daqueles cães irritantes que ladram mas não mordem. Um bluff, em suma. E a Rosinha sabia-o. Estava mais danada consigo, por se deixar apanhar, que amedrontada pela bravata do Quim Zé. Aproveitou um momento de maior frouxidão e safou-se do aperto, largando a correr para casa. Foi no momento em que se virou para trás, a meio da corrida, para gritar, num desafio:
- Ui, estou a morrer de medo. Tu és tão mau, tão mau...
que o carro a colheu e a atirou pelo ar, num voo planado de vários metros.
A Rosinha deu entrada no Hospital da Estefânia, onde ficou internada pelo exíguo período de dois anos e nove meses.

O irmão Quim Zé visitava-a amiúde, sentindo-se responsável pelo acidente. Mas com o passar do tempo a Rosinha, que sempre o culpou pelo acontecido, foi-se tornando arisca e agressiva, só espinhos sem rosas. E o Quim Zé, adolescente com assuntos prementes e inadiáveis em mãos, espaçou as vistas até se esquecer de aparecer por completo.
A mãe Florentina, pessoa dada a rotinas, visitava-a duas vezes por semana, às quartas e aos sábados. Era regular como um metrónomo e a mãe Joana Preta habituou-se a acertar o relógio da enfermaria pelas idas e vindas da Florentina. Instalava-se na cadeira à beira da cama, com o seu trabalho de costura, e deixava-se ficar, quase sem pronunciar palavra, até soarem as badaladas das cinco da tarde. Nessa altura guardava o trabalho na cesta, beijava a Rosinha na face e ia à sua vida vazia de significado. Mãe e filha pouco encontravam que dizer uma à outra.
A única visita que enchia de sol a vida da Rosinha, agora como sempre, era a Gertrudes da frente. Nunca se sabia quando viria: podia aparecer vários dias seguidos ou permanecer um mês desaparecida. Mas quando vinha, trazia a sua alegria esfuziante e a Rosinha perdoava-lhe prontamente as ausências. Esquecia o ódio negro que crescia no seu coração solitário, que alimentava nas longas semanas em que a Gertrudes faltava, e recebia a amiga com uma gratidão doentia. E a verdade é que, apesar da irregularidade das visitas, a Gertrudes nunca deixou de aparecer e de amimar a doente.
Do carro que atropelou a Rosinha Silva nunca se soube pormenores. Desapareceu pela calçada abaixo sem sequer olhar para trás.
.....
(Continua)

3 comentários:

tacci disse...

Estou roidíssimo de curiosidade. Como é que uma Rosinha se transforma numa Madama?

mulher disse...

já somos dois :)
mandei-te uma fotos por mail

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Olá Hainnish

As férias são revigorantes e fazem bem ao corpo e à alma, mas há pessoas -é meu caso- para quem elas desaguam no trabalho intransmissível que se acumula e é a cagra dos trabalhos, como soe dizer-se. Ora como primeiro vem a responsabilidade do dever, se bem que tenha passado por aqui num ou noutro dia, só agora estou como tempo de dizer.

E antes de mais para expressar o desejo que estejas bem que estendo a todos os que amas e te fazem feliz.

Mas também para dizer o dito, muitas vezes, o quanto me encantam as tuas histórias e o quanto elas me fazem reflectir.
A da decisão de suicídio, é de uma beleza estranha mas convincente e deixa-nos um olhar despegado mas crente, na esperança que afinal se proclama pelo efeito do espelho. A vida perde o interesse quando perdemos a capacidade de lhe atribuir um sentido e essa é uma luta interior de que todos temos que ter consciência e teremos que, de uma maneira ou outra, saber travar -ainda que admita que há aqueles em que ela se desenrola completamente fora de controlo da consciência e nuns casos seguem em frente até ao último suspiro e noutros se decidem a apressá-lo.

A Madame Rose está no ar. Espera-se o capítulo seguinte.
Mas nos tempos de chumbo que correm neste cantinho à beira-mar saqueado, perdão, queria escrever plantado, há uma metáfora de Madame Rose na promoção a que assistimos do indizível. Nesse sentido, a tua Rose leva-nos a pensar e a questionar o porquê do que nos rodeia.

E pronto, não te quero empatar e muito menos maçar mais. Renovo os votos para que a vida te cante ao jeito da Primavera, tanto no chão, como nas asas do fim das tardes.

O melhor para ti, Hainnis

Luís