quarta-feira, 14 de abril de 2010

A Ponte Velha

O caminho da ponte velha é o caminho velho, antes de haver estradas e de haver o IC (o IC é a estrada nova que vem de Lisboa, com uma ponte montes de alta. Agora toda a gente anda pelo IC, já não andam pelas estradas velhas). A mamã diz que o caminho velho existe desde o tempo dos romanos. Mas a ponte não, a ponte é do tempo dos reis. A ponte romana desapareceu, se calhar desmancharam-na os reis para fazerem a ponte velha.

O caminho da ponte velha desce muito, até ao rio e à ponte velha, e depois volta a subir do outro lado. É um caminho para burros e cavalos, não é para carros, diz a mamã. Mas nós já viemos de carro, no jipe do avô. Do outro lado há um carro, todo desfeito, a meio da encosta. Voou lá de cima, do IC. Da ponte do IC. Foi o Quim da bomba de gasolina, vinha com os copos, toda a gente sabe. Ficou todo aos bocadinhos, foi uma trabalheira para os bombeiros. Nós tentámos ir lá, para explorar o carro, mas não há caminho. Está no meio das rochas e do mato, e as encostas são muito, muito inclinadas. É um carro vermelho, mas está um bocado desbotado, como quando a mamã lava muito as camisolas. Está assim quase cor-de-rosa.

Da ponte velha dá para mergulhar, desde que seja mesmo do meio. O rio é muito fundo, aí. Fazemos concursos de mergulhos. A primeira vez é super difícil. A gente vê os outros a saltarem, os mais crescidos, mas não podemos. Eles nunca deixam, e nós não sabemos nadar. Depois começamos a saber nadar, mas o salto muito grande, mete mesmo medo. Mas isso já foi há montes de tempo, para aí quando eu tinha sete ou oito anos. Depois temos de ganhar coragem na primeira vez, a primeira vez custa. Mas depois, depois já não custa nada. Depois da primeira vez, é super fixe!

Fazemos concursos a ver que faz a maior bomba. Quem esparrama mais água (esparramar é da mamã, é o que ela diz sempre que eu tomo banho de banheira cheia. Esparramas a casa toda! Adoro banhos de banheira cheia. Quando eu era pequeno dizia sempre que eram banhos de emergência, mas a Camila fartava-se de gozar. Dizia que, no estado em que eu chegava da escola, era uma verdadeira emergência. Agora já sei que são de imersão). A bomba é assim: saltamos e encolhemo-nos no ar. Os joelhos no peito, a cabeça encolhida, os braços em volta dos joelhos. Uma bola, temos de ser uma bola. Uma bomba! Splash! Água para todo o lado. Esparrama água, montes de água. Salpica tudo. Vitória! Vitória!
Mas não sou o campeão, não consigo. Na bomba são os padeiros. Esparramam muito mais água, porque são gordos. Fazem as melhores bombas do mundo.

Depois nadamos até à margem. Só há um sítio para sair, nos outros as pedras são super afiadas, magoam montes, e não dá para trepar. Isto é outra coisa que aprendemos com os crescidos, ver onde é que eles saem. Mesmo no sítio onde dá para sair, as pedras magoam os pés. E as ervas. E as silvas. Andamos super devagarinho, com montes de cuidado, para ver onde é que pisamos. É demais, ver os outros a sair de dentro de água. Parecem super totós, atrasados mentais. Parecem a Ticha, que andou comigo na infantil. A Ticha é atrasada, ainda tinha fraldas aos 5 anos e não sabia falar, fazia Aaaah, e Ooooh, e dizia Meu! sempre que queria uma coisa. Os miúdos chamavam-lhe montes de nomes: def, anormal, estúpida, atrasada mental, e isso. Mas só se ninguém ouvisse. Se as professoras ouviam, ia tudo de castigo. A Ticha tinha uma doença, problemas de desenvolvimento, explicou-me o papá, por isso não era igual a nós. Depois foi para outra escola, uma escola especial para meninos com problemas de desenvolvimento. Foi o que o papá disse.

Quando vamos mergulhar da ponte velha escondemos as roupas. Temos um esconderijo só da pandilha, atrás de uma rocha, num sítio secreto. Porque, se não escondermos, escondem os outros. Se vier outro grupo, outros miúdos, escondem-nos a roupa. Não podemos deixar nada à vista. Uma vez apanhámos uns franganotes e escondemos a roupa deles. Foi bestial! Vê-los como uns totós, a andar todos tortos à rasca dos pés à procura da roupa.
(...)