domingo, 10 de junho de 2007

A verdadeira História da Carochinha

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!


Uma certa manhã, que é como quem diz, um certo après-midi, a Carochinha acordou com uma forte dor de cabeça e a boca a saber a papel de música, fruto de mais um dia, isto é, uma noite de labuta.

De mau humor, que isto não é vida!, deteve-se a contar as suas poupanças para se reformar daquelas andanças. Mas as economias eram escassas, que as coisas estão duras mesmo para os trabalhadores mais dedicados.

Mas a Carochinha era uma rapariga industriosa! Afinal, nem toda a gente é capaz de largar o país, a casa, a família, deixar tudo para trás e vir à aventura, em busca da sorte e da fortuna! A Carochinha era uma rapariga de iniciativa e sabia-o.

E depois, tinha aquele corpito que Deus lhe deu, e a carinha laroca, que bem lhe tinham valido para se safar na vida. Enfim, ao menos não andava na rua como umas e outras que conhecia! No bar os clientes eram gente elegante e endinheirada, ofereciam prendas e pagavam copos. Não é que não fossem uns porcos, lá nisso são todos iguais, os homens não podem ver um rabo de saia! Mas ganhava-se a sério, massa da grande. E não se apanhavam tareias!

Mas pronto!, ainda assim! O que é de mais é de mais, e depois, a Carochinha sabia que não caminhava para nova. Ainda era bonita, ainda era desejável, mas os anos não param e em breve deixaria de o ser.

Neste estado de espírito, tomou uma decisão: estava na hora de procurar marido. Requeria-se que fosse bem abastado, bem apessoado e bem apetrechado, que a Carochinha queria reformar-se mas não tanto.

Sentou-se à secretária, lápis em punho, e dedicou-se à difícil tarefa de alinhavar duas palavras inteligíveis por terceiros. Depois de muito suar e desesperar, produziu a seguinte obra-prima, da qual muito se orgulhou:
“Mulher jovem, bonita e com posses procura cavalheiro bem na vida para relação séria e futuro compromisso.”
Feliz, consigo própria e com uma tarefa bem realizada, a Carochinha mirou-se no espelho e perguntou-se:
- Quem quer casar com a Carochinha, que é airosa e formosinha?
E preparou-se para seleccionar pretendentes.

Nos dias seguintes a Carochinha não teve mãos a medir. Os pretendentes afluíram e a todos ela entrevistou. Até tirou a semana de férias!

Mas os rapazes foram uma desilusão. Uns eram jeitosos mas não tinham fortuna, outros tinham dinheiro mas eram gordos, uns eram bem falantes mas tinham voz de cana rachada, outros tinham uma voz de cantor de ópera mas só diziam ordinarices… enfim, uma desgraça! A todos a Carochinha rejeitava, em todos descobria defeitos.

Já a Carochinha desesperava, prestes a desistir, convencida a permanecer solteira para todo o sempre, quando lhe apareceu o João Ratão. Foi amor à primeira vista! A Carochinha ficou deslumbrada.

O João Ratão era um pintas ali do bairro, bonito como ele só, com elegância natural e charme para dar e vender. E muito, muito bem-falante! Fazia profissão de seduzir senhoras solitárias, que lhe pagavam a companhia e outros préstimos. Era um bocado fala-barato, há que confessar em abono da verdade, e um charlatão de primeira, mas era encantador e um bon-vivant. E a Carochinha apaixonou-se irremediavelmente.

Marcaram o casamento num prazo recorde. A Carochinha, convencida de que tinha arranjado herdeiro rico – o João Ratão disse-lhe que era filho de latifundiários ali da Lezíria do Tejo - nem acreditava na sua sorte. E o João Ratão, convencido de que casava com uma esposa abastada, para além de bonita, preparava-se para se dedicar aos seus verdadeiros interesses na vida: mulheres, toiros e vinho.

O resultado era óbvio: escassos três meses após o casamento já os esposos se tinham desenganado. E a paixão assolapada, tão rápida a despontar, foi igualmente rápida a converter-se em ódio assolapado.

Porque o João Ratão, frustrado com a escassez das economias da Carochinha, não parava em casa e, quando aparecia, era para confiscar os ganhos da esposa e para lhe arriar um sopapo por outro.

E a Carochinha, os sonhos de grandeza desfeitos, não só não se reformara como ainda sustentava o João Ratão.

No dia em que a Carochinha deu entrada no Hospital, estadia patrocinada pelo João Ratão, uma queda das escadas segundo a versão oficial, tomou a sua segunda grande decisão: estava na hora de se livrar do marido!

O João morreu na noite em que os esposos comemoravam cinco meses de casados – uma congestão no banho, segundo a versão oficial. Nem queiram saber a versão real!

6 comentários:

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Como vês, "hainnish", não sou o único a achar que as histórias que escreves são muitíssimo bonitas e, para o provar, aqui está mais uma desconstrução de contos que fazem parte do imaginário ocidental.

A comparação com Tim Burton não é abusiva nem descabida, pois o que tu consegues é criar um certo envolvimento de encantamento no leitor que manifestamente o prende a partir do que é estranho e que normalmente não consideramos enquanto objecto de beleza. Isso é manifesto na história anterior e na "Foi Por Te Amar", mas também é visível nesta se a lermos com atenção e atentarmos nos pormenores de um colorido deslavado como se de uma película a preto e branco se tratasse.
Ora o filme em que o cineasta consegue levar isso mais longe -na minha mais que modesta e humilde opinião, devo sempre ressalvar- é precisamente aquele de que falas, inexplicavelmente traduzido para a nossa língua como "O Estranho Mundo de Jack", se não estou em erro.
É a ideia de nos lembrar que o horrendo é uma das outras faces da humanidade e que o aspecto nada tem a ver com a massa de que é feito o coração.
Ora tu fazes isso com um ritmo narrativo e uma reunião de palavras e imagens e metáforas usadas com delicadeza que conferem ao texto um clima de elegância muitíssimo cativante e ainda mais agradável de seguir e por isso, como te disse,prendes o Leitor,provavelmente chegas a manipulá-la e isso é a marca de um bom escritor.
Depois -e sempre para meu gosto- não és moralista no sentido de não fazeres qualquer apologia de princípios e valores que queiras impôr aos outros ou que eles, no mínimo, reconheçam como bons. Não, consegues o resultado bonito de nos apresentares uma história que mais do que nos dizer nos convida a pensar e isso é outra das marcas de um bom escritor.
É claro que vais dizer que não és escritora que não tens pretensões no ramo e jamais pensarias em fazer trabalhos de um folgo maior. Naturalmente nada tenho a dizer sobre isso, pois nem mesmo tenho como duvidar. Contudo, não será isso que retira uma vírgula às minhas palavras e logicamente não será isso que desmintirá o facto de escreveres com muitíssima beleza e inteligência.
E depois deixa que te diga, aqui no blog, as ilustrações do Tacci ainda maior encanto conferem àquilo que escreves e permita-me que te diga ainda que, dessa forma,consegues um resultadoexcelente. Smpre na minha mais que modeste humilde opinião, é bom de ver.

E pronto, não te empato mais, convido-te a dar um salto ao Largo da Graça onde decorre uma conversa que a Marta teve a generosidade de nos propor e que tem pano para mangas.

Tudo de bom para ti, hainnish e todos aqueles que amas e te fazem feliz

Luís F. de A. Gomes

Hainnish disse...

Luís,

Obrigada, mais uma vez fico sem palavras.
Estivemos simultaneamente a deixar mensagens nos blogues um do outro. Acabei de deixar a minha contribuição no "Largo da Graça". O tema desta semana, apresentado pela Marta, é de grande interesse para mim e a "História da Carochinha" adequa-se ao tema.

Um abraço.

Anónimo disse...

Vejo que o meu querido amigo Luís a visita e também vejo que ele razão naquilo que diz a respeito destes seus textos.

Parabéns pelo blog que é feito de arte própria e tem a beleza que só a elegância das coisas simples mas inteligentes consegue.

Desejo-lhe o melhor e mais santo Sábado de paz para si

Zara Malacuto

Hainnish disse...

Zara:

Bem vinda ao "Histórias...". Ainda bem que gostou, volte mais vezes.

Um abraço e um bom fim-de-semana.

Anónimo disse...

Inesinha
Adorei a tua fábula dos dias de hoje com o toque de desumanidade que nos caracteriza. O português é límpido.

Parabéns
Vica

Hainnish disse...

Olá Vica:

Bem vinda aqui ao meu cantinho. Fico contente por ter gostado das minhas histórias e espero que apareça mais vezes.

Um beijo e uma semana feliz.

P.S. - Quanto à novela, não se preocupe com isso. Posso sempre imprimi-la outra vez. Beijos.