terça-feira, 10 de abril de 2007

Perguntas difíceis

.....- Olá, pai. Onde é que estás? – perguntou ela, do outro lado dos quilómetros infindos que os separavam e de um barulho que dificultava seriamente a comunicação.
.....- Ainda estou no trabalho, querida.
.....- Mas hoje é Domingo, pai! Ninguém trabalha.
.....- Eu sei, querida, mas o pai tinha umas coisas para fazer. Mas já acabei. E tu, o que estás a fazer?
.....- Estou na festa. A Mãe e o Carlos fizeram uma festa e está cá montes de gente. É giro, sabes?
.....- Ainda bem. Diverte-te.
.....- Pai... tu não gostas da mãe?
.....- Que disparate, querida, claro que gosto da mãe.
.....- A mãe também diz a mesma coisa, que gosta de ti. Porque é que vocês já não estão casados?
.....- Ó filha, sei lá. Tu fazes cada pergunta... Olha, tu tens amigos lá na escola?
.....- Sim.
.....- E namoras com eles?
.....- Não. Só com o Duarte.
.....- Namoras com o Duarte? Não me tinhas contado.
.....Ela deu uma risadinha do lado de lá do telefone:
.....- Ele está sempre a querer dar-me beijinhos e eu fujo dele. Às vezes bato-lhe, e ele também me bate. Mas às vezes brincamos e eu dei-lhe o meu anel cor-de-rosa com o coração. Sabes qual é? É um anel de casamento, sabes? A gente vai casar quando for grande. E ele fez-me um desenho cheio de corações, muito lindo.
.....- Então estás a ver, já começas a perceber. Mesmo com os namorados, mesmo se gostamos deles e queremos casar com eles, às vezes brigamos, não é?
.....- É.
.....- E tens outros rapazes amigos além do Duarte?
.....- Claro.
.....- E gostas deles, assim só como amigos, não gostas?
.....- Gosto.
.....- Então é mais ou menos como a mãe e eu. Nós gostamos um do outro como amigos, estás a ver? Mas quando experimentámos namorar, passávamos o tempo à bulha. Assim como tu e o Duarte. Estás a perceber?
.....- Quer dizer que eu tenho de me separar do Duarte?
.....Foi a vez do pai dar uma risada, disfarçada para não a ofender:
.....- Querida, tu ainda és muito nova. Ainda faltam muitos anos para te casares, e provavelmente vais ter muitos namorados até lá. Se continuares a gostar do Duarte durante esse tempo, então acho que não vais ter de te separar.
.....- ‘Tá bem. Mas eu gostava que tu e a mãe ainda estivessem casados.
.....- E o Carlos? Não gostas dele? Se nós estivéssemos casados não conhecias o Carlos nem vivias com ele, não era?
.....Uma das coisas que mais lhe custava era a excelente relação que o seu substituto tinha com a filha. A garota adorava o padrasto o que, racionalmente, deixava o pai muito feliz mas que, emocionalmente, lhe partia o coração. Fazia gala em afirmar que prezava o bom ambiente familiar que a ex-mulher conseguira criar para si e para a filha, mas na verdade detestava essa felicidade tranquila que tinham conseguido sem si.
.....- Era.... – a garota ficou um segundo pensativa. – O Carlos é fixe, mas preferia viver contigo, mesmo assim.
.....- Ó querida, eu também preferia ter-vos comigo, mas as coisas às vezes não acontecem exactamente como nós queríamos, sabes?
.....- Sei. Eu queria a bicicleta da Barbie mas a mãe e o Carlos compraram-me uma vermelha, do Declatlon.
.....- Não foi o Pai Natal que te trouxe a bicicleta?
.....- Ó pai! Eu sei que o Pai Natal não existe, OK! Já não sou uma bebé. Sei perfeitamente que o Pai Natal é o Tio Pedro mascarado, OK? – refilou ela, do alto dos seus sete anos recentemente completados.
.....- Pronto, desculpa.

6 comentários:

mulher disse...

gostei: há coisas que racionalmente nos deixam feliz e emocionalmente nos partem o coração

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Texto muito bonito, cheio de um delicadeza que lhe confere um ambiente encantador.
Pena que a realidade não seja com mais frequência assim tão inteligentemente construida, ainda que vivamos num tempo civilizacional em que as pessoas têm que aprender cada vez mais a serem capazes de encararem estes problemas precisamente pela via que aqui está exposta, a do entendimento. Na verdade, antes dos amores e desamores dos pais que por o serem não deixam de ser pessoas livres, mas antes disso estão aqueles que não pediram para nascer e por quem temos que agir para que possam crescer o mais perto possível do carinho e da atenção que tem o propósito de lhes propiciar que venham a ser pessoas saudáveis e também elas livres.
Daria uma conversa bem mais profunda do que pode parecer à primeira vista.
Foi a "Hainnis" que escreveu estas palavras? Se assim foi, parabéns, está uma "short storie" muitíssimo bem conseguida, a todos os níveis.
Muito obrigada pois pela mesma.

Luís F. de A. Gomes

Hainnish disse...

Ana:
Obrigada pela visita. Aida bem que gostaste.
Beijos.

Hainnish disse...

Luís:
Obrigada pela visita e pelas suas simpáticas palavras.
Todos os textos deste blogue são meus. As ilustrações peço-as emprestadas a quem é mais dotado para as artes do que eu.

Um Abraço.

António Melenas disse...

Olá,
Pois eu nãovim aqui por acaso. Vim a partir doo seu comentário nos meus "Escritos Outonais.
Este seu blogue é completamente doftente da maioria dos que conheço e muito interessante. Todo ele escrito e orientado de uma forma pedagógica e acessível.

Permita-me que discorde, apenas de uma afirmação, num dos posts anteriores, de que o uso da 2ª pessoa do plural está praticamente restringido à linguagem. eclesiástica.
Na minha Província (Trás-os-Montes) ele é muito utilizado. "Então de onde vindes?" "Gostais cá da nossa terra?". E eu acho uma maravilha ouvir frases como esta.
Mas opiniões são opiniões.
No entanto, eu próprio, quando se trata de falar da nossa gramática a um estrangeiro (Nesses casos sim)lhes digo sempre para esquecerem a 2ª pessoa do plural
Um abraço

CIDE disse...

PERGUNTAS DIFíCEIS E BOAS.
AS BOAS PERGUNTAS QUESTIONAM E ALERTAM OS ESPÍRITO.São as perguntas dos mais pequenos que muitas vezes nos "chamam à razão".
São as boas perguntas que nos indicam o melhor caminho.

MFI SEMPRE!