domingo, 30 de setembro de 2007

Vizinhos

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Chove. Uma chuva grossa, de pingos molhados. Pingos que se insinuam, gola abaixo, e nos arrepiam como dedos gelados. Dedos de fantasma que nos eriçam os pelos da nuca. Porque este é o sítio deles, a sua casa, o seu habitat. Porque isto é o cemitério, o mundo das almas inquietas que vagueiam num desassossego sem fim.

No cemitério está escuro. Escuro como uma noite escura de Inverno. E chove, uma chuva gelada e desconfortável.

Espreito o grupo. Debaixo dos amplos guarda-chuvas aguardam. Ouvem o arrazoado do padre gorducho, impacientes. Mudam o peso de um pé para o outro e maldizem o morto, que escolheu péssimo dia para decidir morrer. Não vêem a hora de isto acabar, de se irem embora para o quente de casa.

Também eu aguardo, impaciente. Aguardo que eles terminem para voltar para casa. Não posso entrar enquanto por aqui andarem. Também eu não vejo a hora de acabarem.

Eu espreito o grupo. São gente rica, cheiram a dinheiro. As roupas são caras e o jazigo é enorme. Enorme e antigo, cheio de nossas senhoras e anjinhos reboludos, quase tão reboludos como o padre ao fundo. Um jazigo de família, rico e ornamentado. Mas não como o meu. O meu é melhor, um dos melhores.

Olho para eles, estudo-os bem. Afinal, é útil conhecer os vizinhos. E esta gente é minha vizinha. O jazigo deles fica mesmo aqui, paredes meias com o meu. Nunca cá tinham sequer aparecido. Será que agora passarão a cá vir, ver o morto de hoje? Virão aos domingos, prestar homenagem ao finado?

O padre calou-se, a cerimónia termina. O grupo despede-se, está de saída. Dispersam-se e passam em grupos menores. Passam por mim sem sequer me notarem, ou notam-me com um olhar de nojo profundo. Nada de novo, estou habituado.

Foram-se embora, posso entrar. Entreabro a minha porta, desconfiado. O meu jazigo descansa em paz. Os meus cobertores ainda cá estão, dissimulados ali naquele canto. As minhas latas não foram mexidas. Tiro do bolso o pacote de vinho, o naco de pão e instalo-me para a noite.

Espero que não tornem. Não quero vizinhos.

8 comentários:

ATIREI O PAU AO GATO disse...

O sem tecto da solidão mais solitária jamais deixa de ter a presença de uma humanidade que só pede por viver, sem mais nada. As latas e cobertor são a metáfora desse abandono que já nem apela a vizinhanças.

Mais um momento de leitura que nos enche a alma, depois de nos alindar uns momentos da noite.

Muito obrigada, Hainnish, tudo de bom para ti e aqueles que amas.

Luís

tacci disse...

Surpreendente. :-)

Hainnish disse...

Olá Luís,

mais uma vez seja bem aparecido. Peço desculpa pelas minhas ausências, que nem tenho respondido às mensagens que me deixam nem tenho tão pouco visitado os blogs amigos. Enfim , excesso de trabalho que, esperemos, não há-de durar sempre.

Um abraço e uma boa semana.

Hainnish disse...

Olá Tacci.

Já cá está mais uma historinha. Tarda mas não falha (pelo menos por enquanto!)
Agora falta a tua parte. Quero um sem abrigo lindo de morrer.

Beijos.

mulher disse...

Também gostei muito. Sim, espero que o Tacci faça um sem abrigo com alma.

Hainnish disse...

Olá Ana,

Ainda bem que gostaste.

Beijos.

Graza disse...

Muito Bom!

Hainnish disse...

Olá, Graza, bem vinda ao "Histórias...". Apareça mais vezes.

Um abraço.