terça-feira, 4 de setembro de 2007

Madame Rose IV (e último)

Assim a Rosinha foi ensaiando para um futuro risonho como vidente. A sua fama depressa se espalhou, ultrapassando as fronteiras do liceu feminino e conquistando o Bairro Alto de fio a pavio. A clientela cresceu, firmou-se, e a Rosinha montou um consultório à séria no quartinho independente, que tinha porta para a rua. O facto de ter desalojado a mãe da salinha da costura, onde ela exercia o seu modesto mister de modista, não a incomodou minimamente. E a velha Florentina, intimidada por uma Rosinha mandona e prepotente, resignou-se a receber as clientes na sala dos fundos.
O consultório foi um passo importante. A Rosinha decorou-o com esmero, investindo os primeiros lucros no visual, no seu e no do consultório. Tudo à grande. Metamorfoseou-se em Madame Rose à séria. O pessoal da vizinhança, as mulheres sobretudo, não se fizeram esperar. Batiam no vidro da cozinha do nº 6 da Travessa dos Inglesinhos, ao fim da tarde ou depois do jantar, para marcarem hora com a Rosinha. Com a Madame Rose, perdão!, que ela não era mulher de diminutivos ou de intimidades. E não era tonta como a Mãe Joana Preta, que dava consultas ao preço da uva mijona porque o seu coração, demasiado brando, se compadecia das misérias dos seus conterrâneos. A Madame Rose fazia-se pagar, e não era barata!
No liceu, cultivou amizade com as meninas de boas famílias, que a toleravam e amimavam como quem amima um macaquinho de estimação. A Rosinha, feia e deformada, mas que faz cabriolas divertidas com cartas e sinas e previsões várias. A Rosinha, a atracção do momento nos chás e nas tardes das meninas do Liceu.
A Rosinha, que de parva não tinha nada, sabia-se palhaço de circo. Mas, sabida como ela só, calava-se e representava, conquistando aqui e ali mais um crente fiel, estabelecendo uma rede de clientela. E não tardou a que as senhoras mandassem a criada marcar hora com a Rosinha, que as recebia com chá e bolinhos, servidos pela apagada Florentina.
E a fama da Rosinha cresceu.

Hoje a Madame Rose é a bruxa da moda, com consultório em pleno Bairro Alto, procurada por gente de diversos quadrantes: um ministro e três ex-ministros, políticos de todos os credos, gente do teatro e das artes, jornalistas conhecidos e intelectuais vários, empresários de sucesso, eu sei lá... só a nata da sociedade, que ao povinho a Madame não atende e os preços são proibitivos.
O nº 6 da Travessa dos Inglesinhos está irreconhecível, transformado que foi num consultório de luxo, obra de uma decoradora de renome (e cliente fiel da Madame Rose).
A Madame Rose, o esqueleto deformado e a alma negra, emana um misto de encanto e terror que atrai irremediavelmente certas personalidades, como um íman potente. Na Madame Rose confiam para gerir os seus destinos, o das suas empresas, o dos seus partidos. À Madame Rose recorrem para realizar os seus trabalhos: remover algum escolho, algum empecilho que ameaça no campo profissional ou pessoal. Porque a Madame Rose não tem escrúpulos, diz-se, e tem uma alma negra como a escuridão. Porque a Madame Rose é malévola, consta, e gosta dos trabalhos escuros, dos maus olhados, dos feitiços malignos. Porque a Madame Rose é só espinhos, a flor murcha desaparecida há muito. Porque é a Madame Rose.

3 comentários:

tacci disse...

Que pena. Agora que eu começava a gostar da Rosinha...

ATIREI O PAU AO GATO disse...

A D. Branca da alma, para uma cultura de elites de palmo e meio.
Mais uma vez obrigada pelos presentes que nos dás a ler, Hainnish.
Tudo de bom para ti e todos aqueles que amas

Luís

Samuel Wolf disse...

Parabéns pelo blog, cheio de bom gosto e com muita criatividade literária cheia de interesse e muito bonita. Um espaço cativante.

Já linkei este blog.

Um Santo Sábado para si