sábado, 13 de outubro de 2007

A escola

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!


Baixo a tampa e sento-me na sanita. Já está. Hoje já estou safo. Ninguém me viu entrar aqui dentro, posso esperar pela noite à vontade. A mãe vai ficar furiosa, vou chegar outra vez tarde a casa. Mas que se lixe, não quero saber.

Hoje já escapei. É a minha vantagem, a minha única vantagem: a rapidez. Porque eu sou rápido. Pequeno mas rápido. Posso sempre correr mais que eles. E eu sou esperto. Conheço cada buraco desta espelunca, cada esconderijo. E os brutos não me podem apanhar.

Odeio-os. Odeio-os a eles e odeio-me a mim. Porque tenho medo. Não sou corajoso e prefiro esconder-me. Prefiro enfiar-me na casa de banho, encolher-me aqui durante horas a fio. Passo as horas a ler histórias de aventura, histórias de heróis como eu nunca serei. Porque eu sou um cobarde. Morro de medo daqueles mentecaptos. Quem me dera ser bem grandalhão, mesmo que tivesse de ser mentecapto.

Hoje já estou safo. Na 5ª feira deixei-me apanhar. Disse à mãe que tinha brigado, escolhi um miúdo mais pequeno que eu. A mãe ficou furiosa, mas antes furiosa que preocupada. Se ela percebe ainda faz queixa, e se ela faz queixa quem paga sou eu. Fui bem avisado. Se alguém descobrir, dão cabo de mim. Antes quero a mãe furiosa, sem pena de mim ou dos meus arranhões. Antes quero ficar de castigo, todo o sábado fechado sem sair do quarto. Não me importo. Tenho os meus livros e o meu computador. Quem me dera que fosse sempre sábado!

A mãe nem sonha. Acha que estou a ficar um rufia. Outro dia recebeu uma carta da escola, a informar que eu falto às aulas. Ia tendo uma coisa má. Pensa que eu ando em más companhias. Nem ela imagina, quão más elas são! Disse-lhe que ia ao café, jogar matraquilhos. Quem me dera poder! Escusava de ficar aqui toda a tarde, nesta sanita fria e desconfortável.

Abro a mochila e tiro a caixa. Costumava estar na mesinha da sala, trancada a sete chaves, mas já há uns tempinhos que a tenho escondida. De dia anda comigo na minha mochila, de noite descansa debaixo da cama. Ninguém deu por isso. Todas as noites abro aquela caixa, pego nela e acaricio-a. Imagino que a uso um dia na escola, e por uma vez vou ser eu o herói. Por uma vez vão ter medo de mim. Se ao menos eu tivesse coragem... mas eu vou ter! Encho-me de coragem e decido que é hoje. Hoje eu vou ter!

Agarro-a bem com as duas mãos. Tenho de ser forte, não posso tremer. Atravesso o pátio completamente vazio. A minha aula já começou. Bato à porta e o professor abre. Começa a ralhar por causa do atraso. Não lhe dou tempo. Disparo uma vez, duas, três... disparo outra e outra vez. Depois viro as costas e desato a correr.

8 comentários:

Graza disse...

Oportuníssimo. Fiz link para ele,

Hainnish disse...

Olá Graza,

agradeço o destaque que deu ao meu conto com o link que fez.

Um abraço.

mulher disse...

A solidão aniquila-nos quase sempre e é trágico quando nos leva a aniquilar os outros

Hainnish disse...

Ana:

É verdade que a solidão é trágica e, normalmente, mais que aniquilar os outros aniquila o próprio. Mas esta história não é bem sobre a solidão. É mais sobre a tortura psicológica (e por vezes física) a que as crianças e adolescentes estão sujeitas, especialmente quando têm a infelicidade de não serem totalmente canónicos, de terem algum pequeno arroubo de originalidade.

Um beijo.

mulher disse...

Eu percebi, mas essa tortura quer seja sicológica ou física leva-os à solidão. E desculpa discordar numa coisa contigo: o arroubo de originalidade não leva a matar os outros.

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Olá Hainnish!

O tormento da alma, num cenário escolar, no começo, quando o carácter ganha os tijolos mais profundos que lhe moldarão as expressões futuras. As relações de poder, de força que só os costumes e as leis limitam muito aquém do que seria o natural predomínio dos mais fortes sobre os mais fracos. O retrato de como isso sempre começa no interior de cada um de nós, pois não serão as regras exteriores que induzirão a nobreza da coragem inerente à autonomia que afinal até é o princípio da liberdade que é incompatível com o medo, com a doença do medo. E a certeza de que a primeira fronteira que nos separa da barbárie e do indizível passa precisamente pela nossa consciência que sempre está dependente da força do nosso carácter.

Exercício difícil Hainnish, pelo risco que se corre em condensar um problema tão vasto e complexo na véspera de um desanlace, mas conseguido e com a mesma elegância com sempre o teu olhar distanciado nos presenteia.

Muito obrigada pois por mais este momento de leitura que tanto nos dá que pensar na mesma proporção do agrado que nos provoca.

Tudo de bom para ti Hainnish e aqueles que amas

Luís

Hainnish disse...

Ana:
O arroubo de originalidade não leva a matar. Leva à descriminação e à tortura psicológica de que falávamos. O resto depende da estrutura emocional e moral de cada um.

Um beijo.

Hainnish disse...

Olá Luís, bem aparecido.

É um fenómeno que cada vez mais marca as nossas escolas, mesmo por cá pelo nosso Portugal.

Um abraço.