sábado, 24 de março de 2007

Fim de Ano

(...)
Uma hora depois, já no Bar do Chico e com um whisky duplo por única companhia - o Chico tinha o bar a abarrotar e não tinha mãos a medir nem tempo para as calmas conversas habituais – o Matias remoera, mais uma vez, as mágoas pela sua relação falhada, pela traição da mulher com o amante banqueiro (o Carlos, que agora se armava em pai da sua menina), pelo orgulho ferido e nunca confessado. Para o mundo o divórcio fora de mútuo acordo, a traição calada e nunca discutida. E ele fora o marido ideal, concordando com tudo e facilitando os processos, as partilhas e a custódia da filha. Ficara amigo da ex-mulher, falavam-se com frequência e viam-se às vezes, quando a miúda passava uns dias com o pai. Ninguém suspeitava, a ex-mulher menos que todos, o quanto tudo aquilo o ferira, o quanto continuava ferido. Porque, muito antes do banqueiro, muito antes da traição, já o casamento andava mal, já a intimidade desaparecera e a distância se instalara. Já as conversas se tinham extinguido, deixando apenas os pequenos diálogos utilitários do dia-a-dia. Já o Matias passava mais e mais tempo no trabalho, entregue aos deveres profissionais, e ela mais e mais tempo de volta do emprego e da filha. O amante fora um sintoma, não a causa do fim. E o Matias sabia-o, como a ex-mulher o sabia. O que ela não sabia, nem nunca saberia, era quanto aquilo o magoara, quanto ele quisera transpor a distância, restabelecer a relação, e quão impotente fora para isso, vendo o casamento desmoronar-se contra a sua vontade.
Sozinho com as suas dores, sem o Chico para o distrair, sem se querer deitar antes da meia-noite e da passagem do ano, o Matias abusara dos whiskys e do tabaco.
Agora, o insistente despertador dizia-lhe que já não caminhava para novo, e que os excessos se pagavam no corpo. Com a cabeça a latejar, o Matias preparou uma cafeteira de café e duas aspirinas, e sentou-se a vegetar, à espera que eles produzissem o esperado efeito de voltar a conferir ao mundo dimensões suportáveis.

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