sábado, 24 de março de 2007

D. Alice

A D. Alice limava as unhas e olhava distraída pela janela, aguardando a polícia. É verdade que estava abananada. Ver o Engenheiro naqueles preparos, com as goelas cortadas, não era fácil. Mesmo sendo uma mulher de armas, com eles no sítio, a D. Alice quase entrara em pânico. Estivera mesmo para sair desabalada porta fora e deixar tudo tal como estava. Sabia lá ela se o matador ainda por ali andava, à espera de cortar o gorgomilo a mais alguém? O melhor era não esperar para ver!
Mas depois o bom senso imperara. Não é que a D. Alice fosse muito instruída, é verdade que só tinha a quarta classe, mas não era por isso que era mais burra. E tinha as coisas dela todas espalhadas, não podia sair assim com tudo desarrumado. Ainda diziam que a matadora era ela, querem lá ver! E depois, a D. Alice já dera a volta ao escritório todo, estava mesmo no fim do trabalho. Se o matador por lá andasse, já tinha dado cabo dela há montes! Não, ele já se devia ter posto a milhas.
Por isso, a D. Alice lá se enchera de coragem e telefonara para o 112. Tinham-lhe feito centenas de perguntas. Tivera de explicar tudinho: que o Sr. Engenheiro estava mesmo muito morto, com a garganta cortada e tudo; que sim, ela estava sozinha; que não, não tocava em mais nada; que era ali na rua dos correios, ao pé da bomba de gasolina; e que se despachassem que ela tinha de ir para casa dar o almoço à neta; sim, ela esperava, mas despachem-se.
E a D. Alice ficara à espera, o telefone ainda na mão. Mas depois pensara: já que ia esperar, ao menos que se fosse arranjando, não precisava de receber os polícias de bata e chinelos! Quem sabe se lhe enviavam assim um cinquentão ainda jeitoso! A D. Alice voltara a calçar as botas à cavaleiro, aquisição recente na feira do Relógio, deixando à vista um pedaço de coxa entre o cano e a mini-saia. Mirara-se no espelho. Até não estava mal, quarenta e seis anos feitos e parecia uma cachopa, quem dera a muitas! Se não fossem os dentes... mas ainda havia de juntar dinheiro para uma dentadura, isso é que havia! Mas também, com duas filhas e uma neta a cargo, como é que ela podia fazer economias, hã?

A D. Alice despegou os olhos da janela e relanceou um olhar para o corredor. E aqueles dois não havia meio de se despacharem, caraças! Ficara tão contente com a chegada deles, achara que agora já podia ir para casa! Afinal não, ainda queriam falar com ela. Ia chegar atrasada e a filha ia desancá-la, de certezinha que a ia desancar. Quando é que a deixavam ir à vida dela, que raio!

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