sexta-feira, 6 de julho de 2007

O Dia D

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Hoje saí. Não fui muito longe, fiquei-me aqui pela Praceta, no banco em frente da porta. Não é uma grande Praceta, nem um grande jardim, assim no meio dos prédios. Mas tem um banco e alguns canteiros, uma árvore e uns raios de sol. E ao sol sinto-me quase quente, quase reconfortado.

Hoje saí e sentei-me no banco. Não muito tempo, que já não consigo. Canso-me demais. Mas queria despedir-me. Do sol, e do dia, e do ar livre, mesmo com cheiro a escape. Mas é melhor do que nada, é mais do que eu tenho tido. E posso sempre fechar os olhos, sob os raios de sol, e pensar que estou na praia ou num bosque frondoso.

Hoje é um dia bom. Na maior parte dos dias não me levanto, estou fraco demais. Dormito e medito, vegeto apenas. Mas hoje não. Hoje é um dia bom. Ainda existem, cada vez menos mas ainda existem.

Não quero viver assim. Não quero morrer aos poucos, devagar, sem acordo de mim. Não quero impor-me essa morte nem impô-la aos outros. Não me quero impor a ninguém, muito menos àqueles que amo, corroendo o amor com a degradação de um fim doloroso, indigno. Não quero ser um velho moribundo e sofredor, incapaz de tratar de si. Quero que me recordem assim, como estou hoje. Ou melhor, como era há um ano, há dois, antes de tudo isto, antes do princípio do fim.

Está decidido há muito. A decisão está tomada, está tudo a prontos. Sou precavido, sempre fui. Tenho tudo o que necessito. Tratei disso há mais de um ano, enquanto podia. Quando soube que era desta, que desta era de vez. Hoje é o dia. Vai ser pacífico. Vou morrer como quem dorme, num sonho infindo.

É esta noite. Quando todos dormirem, quando não houver movimento, será a hora. Posso esperar, é a vantagem da insónia. Posso esperar calmamente. Então, quando todos dormirem, tomo os comprimidos. A embalagem toda, por via das dúvidas. E depois, Ah, depois... depois instalo-me na minha velha poltrona, à janela, preparo um whisky e acendo um cigarro. As saudades que eu tenho de um whisky, Deus meu!, e de um cigarro!

Da minha velha poltrona vejo um pedaço de céu, negro e estrelado. Recosto-me e saboreio. E quando Ela chegar, hei-de dar-lhe as boas vindas.

8 comentários:

António Melenas disse...

Hoje dei uma volta grande pelo teu Blogue - o que nem sempre faço, que a minha vista, coitada... E que bem que escreves.
Como não pões dados biográficos no perfil, não sei nada de ti nem a idade, mas espero que este texto seja mera criação literária. E está óptima.
Um abraço

Hainnish disse...

Olá António,

é sempre um prazer recebê-lo aqui no meu cantinho.
E sim, este texto, e todos os outros, são meras criações literárias. Para responder à sua pergunta, tenho 35 anos, por isso espero que, por enquanto, a realidade que descrevo esteja ainda distante - note-se que nesta história a personagem é idosa mas é, principalmente, doente. Muitos casos há de pessoas idosas com saúde e energia para dar e vender.

Um abraço, António, e volte sempre.

Anónimo disse...

Amiga, é comovente como sempre, e trata dos dramas ocultos do quotidiano. E não te esquceste de honrar a língua mãe.
Continua. Prevejo uma escritora.
Beijinhos
Vica

Hainnish disse...

Olá, Vica,

Gosto muito de a ver por aqui. Ainda bem que gostou da historinha. Apareça mais vezes.

Beijinhos.

Gi disse...

"Ela" quando vier que venha... mas quanto mais tarde melhor. Gostava de a poder esperar assim tranquilamente mas duvido! :)))) Se não trato assim a vida que a conheço há tanto tempo porque hei-de tratar a morte, uma desconhecida com uma tal acalmia?
Mas gostava. talvez dê para fumar um cigerrinho antes :)

Hainnish, gosto de brincar com o tema, é uma forma de exorcizar os meus fantasmas. falando amsi a sério. Gostei da tua história e da forma como a estruturaste. Parabéns.

Um beijinho e boa semana

Hainnish disse...

Olá Gi.

Honestamente, também não sei se serei capaz de encarar as coisas com a calma desta personagem. Mas gostava. Gostava de ter a paz de espírito e a força para decidir quando a vida deixa de valer a pena. E depois a coragem para actuar em conformidade.

Um abraço.

A. Jorge disse...

Excelente!

Abraço

Jorge

http://vagabundices.wordpress.com/

Graza disse...

Parece-me que o ser humano vai amenizando os fardos do final da sua vida, como forma de tornar aquele horizonte suportável. Nota-se isso de uma forma magistral também neste conto. Não fossem os esclarecimentos anteriores e também estaria enganado com a faixa etária da autora.