domingo, 29 de abril de 2007

A verdadeira história do Lobo Mau

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Era uma vez um lobo já velhote, Crispim de seu nome, de alma simples e pacata, dedicado à contemplação e à meditação. Trocando por miúdos, do que o Crispim gostava era de paz e sossego, de se sentar à lareira nas noites de inverno, ou à soleira da porta nas tardes de verão, e deixar o tempo escorrer entre conversas calmas e pensamentos profundos. Para além disso, o Crispim era um lobo com elevados valores estéticos (que é como quem diz, com bom gosto!), a quem chocava e deprimia o espectáculo da caça e das carnificinas, acompanhado, como era de esperar, de muito sangue e muita gritaria.

Assim, e após uma juventude de predador relutante, o lobo Crispim retirou-se dessas andanças e converteu-se ao vegetarianismo. Dedicou-se à sua horta e entristecia-o ver como os seus camaradas lobos continuavam caçadores natos, não se importando rigorosamente nada com os sentimentos das suas presas. O Crispim bem tentou converter a restante matilha mas não teve sorte nenhuma. Para sermos totalmente honestos, devemos confessar que publicou, até, um livro de receitas vegetarianas [1], mas com muito pouco sucesso na comunidade dos lobos.

Como é de calcular, esta atitude na vida tinha afastado muita gente do Crispim. É que os lobos, como as restantes pessoas, não gostam demasiado daqueles que decidem ser diferentes. Por isso, era muito habitual o Crispim andar sozinho e ser gozado pela miudagem da vizinhança.

De entre a malta lá do bairro havia três jovens delinquentes particularmente maus para o Crispim: os três porquinhos. Sempre que encontravam o Crispim na rua, os três porquinhos rodeavam-no e começavam a cantar:
- Quem tem medo do Lobo mau, lobo mau, lobo mau...
E pregavam rasteiras ao Crispim, atiravam-lhe porcarias, cuspiam-lhe, enfim, faziam todas as maldades que queriam. E o Crispim tentava não se zangar.

Os três porquinhos eram três jovens de má fama lá no bairro, sempre à procura de proeminência. E, para mal dos pecados dos seus vizinhos, tinham conseguido alguma fama nos media uns anos atrás, devido à boys band “Chiqueiro”, da qual eram os vocalistas. Quando a época das boys bands passou, os três porquinhos aumentaram a sua notoriedade ao participarem num reality show em que os famosos expunham o seu pior em directo e ao vivo para deleite dos seus concidadãos. Mas o público andava já um pouco saturado dos reality shows e, além disso, os porquinhos depressa foram expulsos pelos colegas devido ao mau feitio e à badalhoqueira.

Assim, não é de admirar que os nossos três porquinhos andassem um pouco enervados com a falta de destaque nas revistas do jet set.

Foi devido a este momento particularmente complicado da vida dos três porquinhos que aconteceu o incidente que a seguir iremos relatar: os porquinhos estavam ociosos na esquina, à espera de qualquer coisa que os distraísse. E o Crispim teve o azar de passar ali pela rua naquele momento. Em suma, estava no sítio errado na altura errada! Quando viram passar o Crispim, os porquinhos pensaram:
- Ora cá está o tonto do lobo! Agora é que nos vamos divertir!
E assim foi: os porquinhos divertiram-se! Encurralaram o Crispim num beco escuro, deram-lhe uma sova, e acabaram arrastando o desgraçado lobo para casa, onde lhe escaldaram o rabo com água a ferver.

Quando o pobre Crispim conseguiu sair de casa, três dias depois, foi apresentar queixa às autoridades. Os porquinhos tinham ultrapassado todos os limites do tolerável, até mesmo para o Crispim, que não gostava de se chatear. Quando se soube lá pelo bairro da iniciativa do Crispim, houve mais gente que se armou de coragem e denunciou os três porquinhos por maus-tratos, abuso de poder, violência, distúrbios, et coetera.

As autoridades investigaram o caso. Mas, não se sabe exactamente como, houve fugas de informação e depressa o caso passou para a comunicação social, onde foi explorado até à exaustão, não fossem os três porquinhos figuras públicas da época. Elaboraram-se debates, entrevistaram-se os vizinhos, as celebridades foram chamadas a dar opinião... enfim, foi um acontecimento social!

E, de acordo com a mentalidade então reinante, exerceram-se pressões junto a quem de direito e demitiram-se alguns membros demasiados atrevidos das autoridades. Concluindo, a investigação foi discretamente encerrada por falta de provas.

Claro que, se a nível oficial as coisas decorreram com esta simplicidade, já na esfera das influências privadas as coisas tiveram outros desenvolvimentos. Alguns jornalistas foram devidamente recompensados pela sua pronta intervenção na disseminação de boatos difamadores do carácter do Crispim. E algumas figuras obscuras na época aproveitaram a ocasião para se lançarem na ribalta, prestando falsos testemunhos acerca da ferocidade daquele lobo hediondo que, embora tentando vestir a pele do cordeiro, não enganava ninguém. O caso mais flagrante, cuja fama perdura até aos nossos dias, é o do Capuchinho Vermelho, que se sagrou herói salvando a sua imaginária avozinha das garras do carniceiro Crispim.

E foi assim que os três porquinhos conquistaram a imortalidade, constando nas histórias que passam de geração em geração como os inocentes que ludibriaram o lobo mau e lhe deram o devido castigo, maldoso quantum satis mas principalmente ridículo, um escaldão no rabo.

E foi assim que o Crispim, lobo vegetariano e de tendências pacifistas, espancado e escaldado por delinquentes juvenis, ficou para a posteridade como o terrível Lobo Mau, personagem central de inúmeras histórias infantis e, irremediavelmente, dos pesadelos das nossas crianças.

[1] “Vegetais para Carnívoros” de Crispim Lupus, da Editorial Fictícia.

16 comentários:

ATIREI O PAU AO GATO disse...

Muito bonita, esta história, Hainnish, cheia de imaginação e de sentido.

Para que a possas ler a quem de direito, aqui te ofereço uma outra, da minha autoria, como retribuição pelo prazer que me deu ler a verdadeira história do Lobo Mau que afinal na realidade era o pobre Crispim, vegetariano e tudo.

Aqui vai, espero que não te aborreças com ela e se for caso de estar a abusar da tua paciência, desde já as minhas desculpas.

O COELHO SANTIAGO

O coelho Santiago é muito, muito, mas mesmo muito velho.
Para que vocês possam ter uma ideia da sua provecta idade, reparem que o seu primeiro grande susto aconteceu logo após a vitória dos portugueses sobre os soviéticos, com a qual a selecção nacional assegurou o terceiro lugar do mundial de futebol por terras da velha Albion.
Era então um coelhinho com pouco mais de três meses de idade, quando repentinamente, sem o menor sinal premonitório, soou a seus ouvidos um estrondo enorme, como se o céu tivesse explodido naquele instante, logo seguido de uma bateria descomunal, tudo indicando ter a Terra inteira se transformado numa daquelas batidas de caça infernais de que o pai lhe havia falado.
A coisa era simples de explicar.
O filho de um agrário, movido pelo seu portuguesismo e, confessadamente, em particular também pelo seu especial benfiquismo já que os atletas desse grande clube estavam entre os principais obreiros da façanha, movido por tudo isso, dizia, decidira comemorar o evento com vinho, pois então, comezaina, está claro, mas igualmente com a inevitável algazarra e porque o contentamento o impunha, alguém se lembrou da morteirada.
Quem nunca chegou a sabê-lo foi o nosso amigo.
Mal a primeira explosão o fez saltar à porta da toca, tal qual um boneco mecânico e a metralha que se lhe seguiu lhe esbugalhou os olhos e espetou as orelhas, uma força inexplicável mas muito maior que a sua vontade deu-lhe corda incomensurável e ai mãezinha que aqui vou eu, vai de fugir daqui que este mundo está a acabar e, quer vocês acreditem quer não, caminhou sem norte durante dois dias e duas noites, parando apenas para uma ou outra urinadelazita e para aqui e ali meter apressadamente à boca alguma erva plantada pelo caminho.
Saiu do sopé do castelo de Santiago do Cacém, de onde lhe ficaria o nome, e nem ele sabe como mas atravessou o Sado, para só parar no montado circunvizinho à lezíria.
Ui, nem queiram saber. Certo certo é que ele nunca mais teve um cagaço daqueles.
Mais que por medo ou atrapalhação, chorou por vergonha, ainda recém serenado daquela maratona, quando deu conta da sua inédita condição de perdido em outras paragens.
Se as lágrimas o acabrunharam e o estrangeiro lhe metia respeito, jurou imediatamente que jamais se deixaria assustar daquela maneira, nem permitiria que o pânico lhe conduzisse os gestos e a vontade.
Desta forma fez ele da campina a sua morada, apesar das muitas viagens, quando, mais moço, as pernas lhe possibilitavam pensar em visitar parentes e conhecidos até em terras do planalto central de Espanha.
Vejam bem há quantos anos aconteceu tudo isto.
E ninguém ainda hoje sabe explicar uma tão grande longevidade.
Não que as tentativas para o fazer tenham faltado.
Vai para uma boa dezena de anos que toda a gente se interroga como este coelho que aqui chegou sem eira nem beira e mais morto que vivo, acabou por conseguir esta proeza incomparável.
Quando lho perguntam pessoalmente, Santiago ri ou então encolhe os ombros e modestamente recorda que o seu pai adoptivo, um honesto cidadão que morrera atropelado numa auto-estrada novinha em folha, mas que lhe ensinara a ser prudente e sensato, sem contudo ter receio de arriscar para melhorar a sua condição, não esquecendo nunca que o dia de amanhã se prepara hoje e além de que a vida não são apenas dois dias.
“-Ora, tudo quanto basta é manter a alma e o corpo sãos.” –Diz por vezes o venerável ancião, cuja maior ambição consiste em levar a sua vidinha descansado, aproveitando os dias que lhe restam com as delícias da velhice que muitas são.
Infelizmente, para ele, nem sempre isso é possível.
Saibam vocês que já foi objecto de simpósios e palestras científicas, sem contar com as inúmeras teorias que se escreveram a seu respeito.
Seja como for, o mais das vezes Santiago limita-se a sorrir.
Dona Coruja, sempre tão sapiente nestas coisas do conhecimento, aventa a hipótese de o segredo residir na mistura de culturas.
Um andarilho como ele, teve oportunidade de contactar e reunir a sabedoria de muitos sítios e assim adquirir a mestria necessária para chegar tão longe.
Contudo, a arvéola Joana objecta que uma coisa não tem a ver com a outra e que a explicação se encontra em factores directamente ligados ao corpo propriamente dito, de tão afortunado láparo.
“-É na alimentação que devemos procurar as principais razões.” –Escreveu ela sobre este assunto, no texto de uma conferência.
Diga-se de passagem que há adeptos das duas teorias.
Como é habitual, Santiago sorri.
“-Talvez seja por todas essas razões.” –Comentou algures, sem com isso querer dar importância ao seu ponto de vista.
Quem não está para cogitações destas são os coelhinhos mais pequeninos que de há muito se acostumaram a sentar-se em redor do velho, para lhe ouvirem as histórias maravilhosas das suas andanças por este mundo.
E Santiago retribui-lhes no prazer.

mulher disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
mulher disse...

Adorei! Logo à noite, via mail, vou-te mandar uma fotografia que tirei de uma árvore num jardim "que não passa de um quarteirão"

Hainnish disse...

Luís:

Obrigada pelas suas palavras e pela história do simpático Santiago, o coellhinho ancião.

Um abraço.

Hainnish disse...

Ana:

Ainda bem que gostaste. Vou ficar atenta, à espera da fotografia.

Um beijo.

Gi disse...

Adorei a tua história. Coitado do Lobo Mau, mais uma vítima dos meios de comunicação. Fizeste bem em limpar-lhe a imagem :)
Do desenho nem falo . Ilustrativo como sempre.

beijinhos

Hainnish disse...

Gi:

Já viu onde o que são capazes de fazer com a boa imagem de um desgraçado?! Se eu fosse ao Lobo, processava os media por difamação.

Um beijo e obrigada pela visita e pelas palavras.

Leonor disse...

uma história que poderia ilustrar tantas outras que ouvimos e lemos nos meios de comunicação social....
e que é tão representativa desta nossa época...
passei e gostei

no largo da graça disse...

“Thinking blogger award”

"hainnish" pela sensibilidade e a ternura de textos originais e próprios, tão cheios de amor e esperança e a a arte de "tacci" que lhes anda associada, para nos fazer pensar, sonhar e sobretudo acreditar que apesar de tudo podemos contribuir para um mundo melhor.
Assim escrevi, “hainnish”, espero que aceite esta escolha o que desde já agradecemos.

Luís F. de A. Gomes

Hainnish disse...

Leonor,

Bem vinda ao meu cantinho. Volte sempre.

Um abraço

Hainnish disse...

Luís,

Fico muito contente por ter escolhido o meu humilde cantinho para o “Thinking blogger award”.

Um abraço.

CIDE disse...

Quantas vezes o lobo bom se torna mau devido às circunstâncias da vida. Na verdade não existem lobos maus nem lobos bons. Existem lobos, que, quando humanos, apenas querem sobreviver. E isso não é mau, nem bom. Nenhum lobo nasce mau; mas alguns tornam-se maus, porque a alcateia uiva e lhe dá a fome e a insegurança em troca.

Hainnish disse...

Dialógico:

É verdade, mais que os condicionantes do nascimento, são as circunstâncias da vida que tornam os lobos (pelo menos enquanto humanos) maus.

Um abraço.

Anónimo disse...

quem é o autor desse conto????
redponde aew...
é ruim viu esse livro...
¬¬...

Anónimo disse...

filha da potaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Anónimo disse...

gostei muito da historia que você escreveu adoreiiiiii!