
Hoje dela restam quatro paredes, esburacadas qual boca cariada. As janelas abrem-se para o vazio, olhos cegos ao mundo.
Entro. Os fetos crescem, por todo o lado. Da segunda janela da esquerda, onde um dia foi o meu quarto no inacessível primeiro andar, uma animada ramada de mimosa espreita a rua, incongruente no seu amarelo vivo. Ali está, a casa da minha infância, onde passei férias encantadas na companhia dos meus avós.
Recordo a avó, pequenina e engelhada, a cara viva e os olhos brilhantes reflectindo as labaredas do fogo. Aterrorizava-me com as peripécias das antepassadas bruxas. Depois, vendo-me transida de medo, consolava-me com abraços rápidos e enormes nacos de pão barrados com compotas caseiras. Ensinava-me as tradições da família, dizia, preparava-me para assumir a herança de uma estirpe de grandes bruxas, da qual ela era a orgulhosa representante e eu a semente futura.
Recordo o avô, grande e calado, deixando as despesas da conversa com a avó. O seu refúgio era o seu bote a remos, no qual passava os dias fumando cigarros e ensinando-me a pescar.
Nunca mais os vi. Não sei o que lhes aconteceu. Desapareceram completamente, sem deixar rasto. Quando voltámos, quando nos foi permitido voltar, já cá não estavam. Nem eles nem ninguém que os tivesse jamais conhecido. Desapareceram pura e simplesmente, como se nunca tivessem existido.
E a casa neste estado. Há um buraco em particular que atrai o meu olhar. Não sei porquê, é igual aos outros todos, aos inúmeros buracos que enfeitam a nossa parede. Sem dúvida buracos de bala.
A custo desprendo o olhar do buraco, da parede. Percorro a casa. Só o rés-do-chão, claro, do andar de cima não resta nada. Com alguma apreensão, confesso. Recordo os avisos, omnipresentes, para não penetrar nas ruínas de guerra. Quem sabe o que ainda ali haverá? A velha lareira ainda cá está. De pé. Encosto-me a ela e pergunto: o que terá sido feito deles? Como terão morrido? O avô que me ensinou a pescar, a avó que me deslumbrava com as antepassadas bruxas? Terá sido rápido?
Encosto-me à lareira e procuro dentro de mim. Não sinto nada. Não voltarei.