sábado, 22 de maio de 2010

A Vingança

......
.....Eu lembrava-me da campa. Escolhi-a de propósito, porque sei de cor onde é. E tem mesmo pinta. É uma das mais antigas, muito simples, apenas uma pedra branca cheia de manchas. Líquenes, acho que foi isso que a avó disse. São assim umas espécies de bolores, ou isso. Tem um nome e uma data que quase não se vêem. Lembro-me dela porque a rapariga morreu muito nova – com 13 anos, mais nova que a Camila – e era da família do avô, tinha o nosso apelido. E isso bastava.
.....O Miguel mordeu a isca:
.....- Qual bruxa?
.....- A minha avó bruxa. Não sabias? Anda daí, vamos vê-la.
.....Levei-os por entre as campas, manchas mais claras na escuridão da noite, até descobrir a campa que queria. Agachei-me ao lado dela e limpei a sujidade e os líquenes com os dedos.
.....- Dá aí uma vela. – pedi.
.....O Xana acendeu uma vela e passou-ma. A chama tremia e fazia mesmo medo, com sombras e montes de mistério à nossa volta. Há uma palavra muito fixe para isso – bruxuleava. A vela bruxuleava. Quer dizer que tremia. É mesmo uma palavra boa para uma história de bruxas. Aprendi-a na net à procura das histórias de fantasmas com o Xana.
.....Percorri a campa e as letras com a vela, lendo lentamente:
.....- Maria Francisca Menezes, 1832 – 1845.
.....Levantei o olhar e olhei-os um a um, terminando no Miguel. O avô dizia sempre que, para contar bem uma história, era preciso primeiro criar o ambiente.
.....- Era minha trisavó. – continuei muito baixinho. - Ou tetravó, não me lembro. Não interessa. O que interessa é que era bruxa. E muito poderosa. É o que diz a minha avó.
.....Fiz outra pausa para colar a vela à lápide (lápide é da avó, é o nome que ela dá às pedras das campas). O Xana acendeu uma segunda vela e eu colei-a também.
.....- Na minha família sempre houve bruxas e isso. São sempre as mulheres. Todas as gerações há uma. A minha irmã, sabes? – olhei directamente para o Miguel – A minha irmã é espírita (esta também tirei da net, espírita). Fala com os mortos, pede-lhes favores. É má como as cobras (esta parte é verdade). Eu nunca discuto com ela, pode ser perigoso (esta já não é, estamos sempre a discutir). Nunca se sabe o que é que nos pode acontecer...
.....Parei para olhar à volta. Como diz o avô, para criar suspense. E para deixar o medo entranhar. Um pouco de respeito nunca fez mal a ninguém, não é, e não convém provocar o irmão de uma bruxa...
.....- Bom, a Francisca. A Francisca nasceu com todos os sinais. Nasceu exactamente à meia-noite de uma sexta-feira treze e era a sétima filha da família. Sétima filha mulher, claro. Os homens não contam, só as mulheres da família é que são bruxas. Mas houve pior. Muito, muito pior: a mãe da Francisca morreu no parto e as corujas piaram a noite toda, desde a meia-noite até de manhã (parto é nascimento. Fixei a palavra porque tem muito mais pinta do que dizer nascimento).
.....Um pio de coruja ressoou no cemitério e eu dei um pulo. Demos todos. Era o Artur padeiro, como combinado. Ele imita o pio de montes de aves e nas sombras da noite nem se percebia que era ele. E mesmo sabendo, mesmo já tendo ouvido o pio à tarde, quando o padeiro fez a demonstração, fui apanhado de surpresa. Chegámo-nos mais uns aos outros, o Xana ao lado do Miguel como combinado.
.....- Desde pequenina que a Francisca tinha jeito. Sentia os espíritos da casa, adivinhava os acidentes antes de acontecerem, curava dores de cabeça só por pousar a mão na cabeça do doente... A avó da Francisca também era bruxa e ensinou-a desde pequena. Aos dez anos a Francisca era mais poderosa que qualquer outra bruxa da Giesteira e arredores (eu tenho dez anos. Dez anos é uma idade super fixe para ser super poderoso).
.....- Conhecia todas as ervas e chás e todas as rezas e feitiços. Conhecia a magia branca, de curar e proteger, e a magia negra, de amaldiçoar e matar. Sabia mais que a avó, que a tinha ensinado, e que a velha Quitéria, a curandeira da Giesteira.
.....A Quitéria é a mulher-a-dias da minha casa e parece um goblin. Detesto-a. Mete-se em tudo e acha que pode mandar na minha vida. Odeio-a. Sempre achei que ela tem mesmo cara de bruxa. Cara e nome de bruxa.
.....- E depois, a Francisca era linda. Parecia uma princesa. Nunca houve menina mais bonita em toda a Giesteira. Pelo menos é o que diz a minha avó. E a velha Quitéria era feia, gorda e cheia de verrugas, parecia um ogre. Por isso, as pessoas começaram todas a ir ter com a Francisca quando precisavam de ajuda.
.....O padeiro piou outra vez e eu voltei a dar um pulo. Eu e todos nós. A Clarinha teve um arrepio e chegou-se para mim. Dei-lhe a mão e tentei dar um tom tenebroso à voz:
.....- A Quitéria decidiu vingar-se e envenenou a Francisca. Tinha 13 anos.
Fiz um gesto teatral em direcção à campa e às letras gravadas.
.....- Desde esse dia, a Francisca volta para assombrar a Giesteira. Mas não assombra toda a gente, nem todo o sítio. Não.
.....Novo pio da coruja. O Xana tocou no pescoço do Miguel com a pena do espanador e o Miguel estremeceu. Olhou rapidamente por cima do ombro, tentando afastar a pena com a mão, mas ela já lá não estava, escondida na mão do Xana. Grande Xana.
.....- Que foi? – perguntei.
.....- Nada. – o Miguel abanou a cabeça.
.....- A Francisca volta para assombrar as pessoas más e invejosas, as pessoas que pensam que são melhores que os outros, - a pena tocou no pescoço do Miguel - as pessoas que batem nos mais fracos. Nessas noites, nas noites em que a Francisca volta, a coruja pia toda a noite, como na noite em que ela nasceu.
.....A coruja piou. A pena voltou a roçar o pescoço e o Miguel estremeceu. Bastava olhar para ele para ver que estava borradinho de medo.
.....- E nessas noites, nas noites em que a Francisca volta, não há protecção possível. Ela entra em todos os locais, todas as casas, onde quiser. Sabes porquê?
.....O Xana estava a postos, tudo pronto para o golpe de misericórdia (golpe de misericórdia é do papá, quer dizer para dar cabo dele de uma vez por todas).
.....- Porque se transforma e sai da sua campa. Transforma-se numa enorme aranha, mas não é uma aranha qualquer: é a Francisca.
.....A aranha de borracha estava colocada, bem colocada no joelho do Miguel. O Xana foi brilhante, o Miguel não deu por nada. Era a vez da Clarinha. Dei-lhe um safanão, para a lembrar. Ela apontou para a aranha e perguntou, numa voz cheia de medo (e que não era totalmente fingido, acho):
.....- Que é isso?
.....- E a vingança da Francisca será terrível. – terminei, em coro com um grito enorme e um salto brutal. A aranha voou para um lado e o Miguel para outro.
.....Levantámo-nos e falámos todos ao mesmo tempo:
.....- Que foi? Que aconteceu?
.....- A aranha. – o Miguel tremia como varas verdes.
.....- Que aranha?
.....Mas não havia nenhuma aranha. O Xana aproveitou a confusão para fazer desaparecer no bolso a pena e a aranha. Grande Xana!
.....E pronto, acabou a nossa visita ao cemitério. Foi fabuloso! Nem chegámos a usar a corrente ou a contar a história dos vampiros. Saímos quase a correr pelo jazigo e não houve mais visitas ao cemitério durante as férias. Vingança, doce vingança! Nunca percebi porque é que é doce. Também nunca percebi porque é que é um prato que se come frio. Que prato? Mas que é muito fixe, é!
.....Mas nessa noite sonhei com a Francisca e com a aranha e acordei cheio de medo.
.....

3 comentários:

Qual Albatroz disse...

Boa! Escreve Mulher!

tacci disse...

Faço minhas as palavras do orador anterior.
Bjnhs.

Rita Coelho disse...

Idem,escreve! Quando e' que podemos ler os escritos maiores?

P.S. "bruxulear" e' mesmo uma palavra muito fixe