domingo, 21 de fevereiro de 2010

Cego

Cego. Fascinava-me a sensação. Tacteava ao longo das paredes, avançando lentamente. Bastava uma porta aberta – qualquer porta, qualquer interrupção na parede que me guiava – para me deixar momentaneamente sem referências. Entreabria os olhos, não conseguia evitá-lo, mas fechava-os com força antes de conseguir ver o que quer que fosse. Não valia batotas. Continuava a avançar, as mãos estendidas à minha frente para sentir o caminho. Em casa dos avós a vida era difícil para os cegos. Havia montes de tretas por todo o lado. No corredor havia uma cómoda e uma estante cheia de tralha – livros e jarras e pisa-papéis e a colecção de mochos da avó – e não podia cair nada, especialmente os mochos. A avó tinha mochos de todas as formas e feitios, de barro, de porcelana, de madeira, de metal, grandes, pequenos, havia mochos por todo o lado. Toda a gente lhe dava mochos. Quando a mamã ia viajar, trazia sempre um mocho para a avó. Os mochos da avó eram uma bênção, dizia a mamã, pelo menos sabia sempre o que havia de lhe oferecer – e isso, posso dizê-lo à confiança, era de facto um alívio para a mamã. A mamã detestava andar às compras, e nunca sabia o que havia de dar às pessoas no Natal.

Depois, passados o corredor e a estante dos mochos, havia as escadas. As escadas eram fáceis. Eram doze degraus e havia o corrimão, bastava segui-lo. Por isso, nas escadas o jogo dificultava, passava para outro nível. Tinha de as descer sem deixar os degraus ranger. O problema era que o único sítio onde se conseguia descer sem ranger era encostado à parede, mesmo muito junto à parede, e aí não havia corrimão a guiar-nos. E, mesmo junto à parede, era preciso descer devagar, pé ante pé, e às vezes não se conseguia evitá-lo. Um degrau rangia. O pior era o sétimo a contar de cima, o quinto a contar de baixo. Esse era mesmo difícil, era necessário muito, muito cuidado para não perder o nível. E não podia abrir os olhos, se os abrisse não valia, perdia na mesma.

Depois das escadas tinha de passar a entrada, o que também não era fácil. Havia uma mesinha com um naperon e o telefone e o cabide com montes de casacos pendurados. Eu sentia o telefone com os dedos, e os casacos, e passava a mão pelos chapéus-de-chuva e pelas bengalas do avô que estavam numa movelzito esquisito que só servia para isso, para pôr chapéus-de-chuva e bengalas – o avô tinha três bengalas, uma muito fixe com uma cabeça de cão no lugar de segurar, mas nunca o vi usar nenhuma. Eu passava os dedos na cabeça de cão e sentia o seu feitio, o focinho, as orelhas. Já uma vez tinha tropeçado nas botas de borracha do avô, que às vezes estavam por baixo dos casacos ou ao pé dos chapéus-de-chuva, mas isso normalmente era só no inverno.

Por fim chegava à cozinha. Passar a porta era fácil, mas depois tinha de atravessar o vazio até chegar à mesa. Quando tocava na mesa melhorava, mas tinha de tactear à volta para chegar ao meu lugar, o que era mau se já houvesse gente sentada. Quando estávamos só os quatro – eu, os avós e a Camila, era fixe, porque não havia ninguém pelo caminho. Mas se houvesse mais gente – os pais, ou os tios, ou alguém da vizinhança, tinha de tactear as costas deles até chegar ao meu lugar. E, pior ainda, às vezes decidiam mudar-me de lugar por causa de uma qualquer visita A avó começava logo:
- O que é que estás a fazer? Pára com isso e senta-te.

Quando eram os pais ou os tios, a avó não ligava muito, mas quando havia visitas ficava furibunda. Mas eu não podia parar. Só podia abrir os olhos depois de sentado no meu lugar. Se abrisse antes, perdia o nível. Perdia o jogo. Estava morto.