domingo, 20 de junho de 2010

Amigos

Nunca falo disso com ninguém. Excepto com o Nosa. Ao Nosa posso contar tudo. Sempre lhe contei tudo, todas as coisas que não falo com mais ninguém.

Dantes, quando eu era pequeno, mesmo muito pequeno, o Nosa estava comigo montes de vezes. Fartávamo-nos de brincar e eu podia sempre contar com ele. Viajava connosco, comia connosco – eu obrigava o papá a pôr mais um lugar para o Nosa, e o papá punha sempre. A Camila gozava comigo, mas nós não queríamos saber, o Nosa e eu. À noite dormia comigo e protegia-me de tudo – dos monstros debaixo da cama e do fantasma do armário, das brigas dos pais e das fúrias da mamã.

Quando eu era mesmo pequeno, costumava dizer que a culpa era do Nosa. O Nosa é que fazia as asneiras, não eu. Eu fazia tudo bem e a mamã podia gostar de mim. Mas ela passava-se, detestava o Nosa. Estava sempre a dizer que o Nosa não era real, que era uma mentira, que me batia se eu dissesse mentiras. E nessas alturas o Nosa não podia jantar, não podia sentar-se à mesa. Ela passava-se só de ouvir falar no Nosa. Não queria que eu fosse seu amigo.

O Nosa nunca se importou de assumir as minhas culpas, nem de passar fome por minha causa. Porque o Nosa é fabuloso. É forte, rápido e super inteligente. Não tem medo de nada.

Agora quase nunca estou com o Nosa. Não sei porquê, ele foi aparecendo menos, cada vez menos, e agora quase nunca vem. Só vem às vezes, quando a mãe anda pior e se vinga mais em nós. Nessas alturas o Nosa aparece à noite, só à noite, e dorme comigo. Falamos montes de tempo e eu conto-lhe tudo, todas as coisas que não conto a mais ninguém. Mas falamos muito baixinho, para ninguém nos ouvir. Para a mamã não ouvir. Se ela sonhasse que o Nosa ainda existe, que ainda falo com ele, nem sei! Acho que se passava de vez.

OK, eu sei que o Nosa não existe, está bem? Sei que é só um amigo imaginário. Mas não deixa de ser bem melhor que todos os outros amigos a sério. Quer dizer, a pandilha é fixe, e são meus amigos a sério, mas não posso falar com eles de certas coisas, não é? Com o Nosa posso. E depois, pode passar meses sem aparecer, mas quando eu preciso dele, quando eu preciso mesmo, ele vem sempre. Sabe sempre. Sabe tudo. É uma das coisas mais fabulosas do Nosa. É um rapaz como eu, mas é muito mais forte, e muito mais esperto, e nunca tem medo. Com ele eu também deixo de ter. É isso. O Nosa faz-me mais forte e mais esperto, quase como ele.

Ontem o Nosa apareceu, depois do papá se ter ido embora. E hoje está comigo de dia, pela primeira vez desde há montes, desde... sei lá, desde que eu era muito, muito pequeno, antes de entrar para a escola.

Por isso não quero ver ninguém. Porque ninguém entende o Nosa e ele assusta-se quando vê gente. E não há mais ninguém com que eu possa falar.

sábado, 22 de maio de 2010

A Vingança

......
.....Eu lembrava-me da campa. Escolhi-a de propósito, porque sei de cor onde é. E tem mesmo pinta. É uma das mais antigas, muito simples, apenas uma pedra branca cheia de manchas. Líquenes, acho que foi isso que a avó disse. São assim umas espécies de bolores, ou isso. Tem um nome e uma data que quase não se vêem. Lembro-me dela porque a rapariga morreu muito nova – com 13 anos, mais nova que a Camila – e era da família do avô, tinha o nosso apelido. E isso bastava.
.....O Miguel mordeu a isca:
.....- Qual bruxa?
.....- A minha avó bruxa. Não sabias? Anda daí, vamos vê-la.
.....Levei-os por entre as campas, manchas mais claras na escuridão da noite, até descobrir a campa que queria. Agachei-me ao lado dela e limpei a sujidade e os líquenes com os dedos.
.....- Dá aí uma vela. – pedi.
.....O Xana acendeu uma vela e passou-ma. A chama tremia e fazia mesmo medo, com sombras e montes de mistério à nossa volta. Há uma palavra muito fixe para isso – bruxuleava. A vela bruxuleava. Quer dizer que tremia. É mesmo uma palavra boa para uma história de bruxas. Aprendi-a na net à procura das histórias de fantasmas com o Xana.
.....Percorri a campa e as letras com a vela, lendo lentamente:
.....- Maria Francisca Menezes, 1832 – 1845.
.....Levantei o olhar e olhei-os um a um, terminando no Miguel. O avô dizia sempre que, para contar bem uma história, era preciso primeiro criar o ambiente.
.....- Era minha trisavó. – continuei muito baixinho. - Ou tetravó, não me lembro. Não interessa. O que interessa é que era bruxa. E muito poderosa. É o que diz a minha avó.
.....Fiz outra pausa para colar a vela à lápide (lápide é da avó, é o nome que ela dá às pedras das campas). O Xana acendeu uma segunda vela e eu colei-a também.
.....- Na minha família sempre houve bruxas e isso. São sempre as mulheres. Todas as gerações há uma. A minha irmã, sabes? – olhei directamente para o Miguel – A minha irmã é espírita (esta também tirei da net, espírita). Fala com os mortos, pede-lhes favores. É má como as cobras (esta parte é verdade). Eu nunca discuto com ela, pode ser perigoso (esta já não é, estamos sempre a discutir). Nunca se sabe o que é que nos pode acontecer...
.....Parei para olhar à volta. Como diz o avô, para criar suspense. E para deixar o medo entranhar. Um pouco de respeito nunca fez mal a ninguém, não é, e não convém provocar o irmão de uma bruxa...
.....- Bom, a Francisca. A Francisca nasceu com todos os sinais. Nasceu exactamente à meia-noite de uma sexta-feira treze e era a sétima filha da família. Sétima filha mulher, claro. Os homens não contam, só as mulheres da família é que são bruxas. Mas houve pior. Muito, muito pior: a mãe da Francisca morreu no parto e as corujas piaram a noite toda, desde a meia-noite até de manhã (parto é nascimento. Fixei a palavra porque tem muito mais pinta do que dizer nascimento).
.....Um pio de coruja ressoou no cemitério e eu dei um pulo. Demos todos. Era o Artur padeiro, como combinado. Ele imita o pio de montes de aves e nas sombras da noite nem se percebia que era ele. E mesmo sabendo, mesmo já tendo ouvido o pio à tarde, quando o padeiro fez a demonstração, fui apanhado de surpresa. Chegámo-nos mais uns aos outros, o Xana ao lado do Miguel como combinado.
.....- Desde pequenina que a Francisca tinha jeito. Sentia os espíritos da casa, adivinhava os acidentes antes de acontecerem, curava dores de cabeça só por pousar a mão na cabeça do doente... A avó da Francisca também era bruxa e ensinou-a desde pequena. Aos dez anos a Francisca era mais poderosa que qualquer outra bruxa da Giesteira e arredores (eu tenho dez anos. Dez anos é uma idade super fixe para ser super poderoso).
.....- Conhecia todas as ervas e chás e todas as rezas e feitiços. Conhecia a magia branca, de curar e proteger, e a magia negra, de amaldiçoar e matar. Sabia mais que a avó, que a tinha ensinado, e que a velha Quitéria, a curandeira da Giesteira.
.....A Quitéria é a mulher-a-dias da minha casa e parece um goblin. Detesto-a. Mete-se em tudo e acha que pode mandar na minha vida. Odeio-a. Sempre achei que ela tem mesmo cara de bruxa. Cara e nome de bruxa.
.....- E depois, a Francisca era linda. Parecia uma princesa. Nunca houve menina mais bonita em toda a Giesteira. Pelo menos é o que diz a minha avó. E a velha Quitéria era feia, gorda e cheia de verrugas, parecia um ogre. Por isso, as pessoas começaram todas a ir ter com a Francisca quando precisavam de ajuda.
.....O padeiro piou outra vez e eu voltei a dar um pulo. Eu e todos nós. A Clarinha teve um arrepio e chegou-se para mim. Dei-lhe a mão e tentei dar um tom tenebroso à voz:
.....- A Quitéria decidiu vingar-se e envenenou a Francisca. Tinha 13 anos.
Fiz um gesto teatral em direcção à campa e às letras gravadas.
.....- Desde esse dia, a Francisca volta para assombrar a Giesteira. Mas não assombra toda a gente, nem todo o sítio. Não.
.....Novo pio da coruja. O Xana tocou no pescoço do Miguel com a pena do espanador e o Miguel estremeceu. Olhou rapidamente por cima do ombro, tentando afastar a pena com a mão, mas ela já lá não estava, escondida na mão do Xana. Grande Xana.
.....- Que foi? – perguntei.
.....- Nada. – o Miguel abanou a cabeça.
.....- A Francisca volta para assombrar as pessoas más e invejosas, as pessoas que pensam que são melhores que os outros, - a pena tocou no pescoço do Miguel - as pessoas que batem nos mais fracos. Nessas noites, nas noites em que a Francisca volta, a coruja pia toda a noite, como na noite em que ela nasceu.
.....A coruja piou. A pena voltou a roçar o pescoço e o Miguel estremeceu. Bastava olhar para ele para ver que estava borradinho de medo.
.....- E nessas noites, nas noites em que a Francisca volta, não há protecção possível. Ela entra em todos os locais, todas as casas, onde quiser. Sabes porquê?
.....O Xana estava a postos, tudo pronto para o golpe de misericórdia (golpe de misericórdia é do papá, quer dizer para dar cabo dele de uma vez por todas).
.....- Porque se transforma e sai da sua campa. Transforma-se numa enorme aranha, mas não é uma aranha qualquer: é a Francisca.
.....A aranha de borracha estava colocada, bem colocada no joelho do Miguel. O Xana foi brilhante, o Miguel não deu por nada. Era a vez da Clarinha. Dei-lhe um safanão, para a lembrar. Ela apontou para a aranha e perguntou, numa voz cheia de medo (e que não era totalmente fingido, acho):
.....- Que é isso?
.....- E a vingança da Francisca será terrível. – terminei, em coro com um grito enorme e um salto brutal. A aranha voou para um lado e o Miguel para outro.
.....Levantámo-nos e falámos todos ao mesmo tempo:
.....- Que foi? Que aconteceu?
.....- A aranha. – o Miguel tremia como varas verdes.
.....- Que aranha?
.....Mas não havia nenhuma aranha. O Xana aproveitou a confusão para fazer desaparecer no bolso a pena e a aranha. Grande Xana!
.....E pronto, acabou a nossa visita ao cemitério. Foi fabuloso! Nem chegámos a usar a corrente ou a contar a história dos vampiros. Saímos quase a correr pelo jazigo e não houve mais visitas ao cemitério durante as férias. Vingança, doce vingança! Nunca percebi porque é que é doce. Também nunca percebi porque é que é um prato que se come frio. Que prato? Mas que é muito fixe, é!
.....Mas nessa noite sonhei com a Francisca e com a aranha e acordei cheio de medo.
.....

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A Ponte Velha

O caminho da ponte velha é o caminho velho, antes de haver estradas e de haver o IC (o IC é a estrada nova que vem de Lisboa, com uma ponte montes de alta. Agora toda a gente anda pelo IC, já não andam pelas estradas velhas). A mamã diz que o caminho velho existe desde o tempo dos romanos. Mas a ponte não, a ponte é do tempo dos reis. A ponte romana desapareceu, se calhar desmancharam-na os reis para fazerem a ponte velha.

O caminho da ponte velha desce muito, até ao rio e à ponte velha, e depois volta a subir do outro lado. É um caminho para burros e cavalos, não é para carros, diz a mamã. Mas nós já viemos de carro, no jipe do avô. Do outro lado há um carro, todo desfeito, a meio da encosta. Voou lá de cima, do IC. Da ponte do IC. Foi o Quim da bomba de gasolina, vinha com os copos, toda a gente sabe. Ficou todo aos bocadinhos, foi uma trabalheira para os bombeiros. Nós tentámos ir lá, para explorar o carro, mas não há caminho. Está no meio das rochas e do mato, e as encostas são muito, muito inclinadas. É um carro vermelho, mas está um bocado desbotado, como quando a mamã lava muito as camisolas. Está assim quase cor-de-rosa.

Da ponte velha dá para mergulhar, desde que seja mesmo do meio. O rio é muito fundo, aí. Fazemos concursos de mergulhos. A primeira vez é super difícil. A gente vê os outros a saltarem, os mais crescidos, mas não podemos. Eles nunca deixam, e nós não sabemos nadar. Depois começamos a saber nadar, mas o salto muito grande, mete mesmo medo. Mas isso já foi há montes de tempo, para aí quando eu tinha sete ou oito anos. Depois temos de ganhar coragem na primeira vez, a primeira vez custa. Mas depois, depois já não custa nada. Depois da primeira vez, é super fixe!

Fazemos concursos a ver que faz a maior bomba. Quem esparrama mais água (esparramar é da mamã, é o que ela diz sempre que eu tomo banho de banheira cheia. Esparramas a casa toda! Adoro banhos de banheira cheia. Quando eu era pequeno dizia sempre que eram banhos de emergência, mas a Camila fartava-se de gozar. Dizia que, no estado em que eu chegava da escola, era uma verdadeira emergência. Agora já sei que são de imersão). A bomba é assim: saltamos e encolhemo-nos no ar. Os joelhos no peito, a cabeça encolhida, os braços em volta dos joelhos. Uma bola, temos de ser uma bola. Uma bomba! Splash! Água para todo o lado. Esparrama água, montes de água. Salpica tudo. Vitória! Vitória!
Mas não sou o campeão, não consigo. Na bomba são os padeiros. Esparramam muito mais água, porque são gordos. Fazem as melhores bombas do mundo.

Depois nadamos até à margem. Só há um sítio para sair, nos outros as pedras são super afiadas, magoam montes, e não dá para trepar. Isto é outra coisa que aprendemos com os crescidos, ver onde é que eles saem. Mesmo no sítio onde dá para sair, as pedras magoam os pés. E as ervas. E as silvas. Andamos super devagarinho, com montes de cuidado, para ver onde é que pisamos. É demais, ver os outros a sair de dentro de água. Parecem super totós, atrasados mentais. Parecem a Ticha, que andou comigo na infantil. A Ticha é atrasada, ainda tinha fraldas aos 5 anos e não sabia falar, fazia Aaaah, e Ooooh, e dizia Meu! sempre que queria uma coisa. Os miúdos chamavam-lhe montes de nomes: def, anormal, estúpida, atrasada mental, e isso. Mas só se ninguém ouvisse. Se as professoras ouviam, ia tudo de castigo. A Ticha tinha uma doença, problemas de desenvolvimento, explicou-me o papá, por isso não era igual a nós. Depois foi para outra escola, uma escola especial para meninos com problemas de desenvolvimento. Foi o que o papá disse.

Quando vamos mergulhar da ponte velha escondemos as roupas. Temos um esconderijo só da pandilha, atrás de uma rocha, num sítio secreto. Porque, se não escondermos, escondem os outros. Se vier outro grupo, outros miúdos, escondem-nos a roupa. Não podemos deixar nada à vista. Uma vez apanhámos uns franganotes e escondemos a roupa deles. Foi bestial! Vê-los como uns totós, a andar todos tortos à rasca dos pés à procura da roupa.
(...)

segunda-feira, 8 de março de 2010

A padaria

Eu adorava o cheiro da padaria, com os fornos nas traseiras e o antiquado balcão de madeira, amorosamente conservado pela D. Assunção, recheado de bolos fofos e cremosos. A avó costumava dizer que era das mais belas padarias do país, com os seus móveis centenários e as arcas frigoríficas habilmente disfarçadas, como nos tempos dos nossos avós, e eu concordo com ela. Naquela altura também concordava, mas não pelos móveis, claro! Pela vitrina! Aquela vitrina era das mais belas visões que povoaram a minha meninice. E um dos mais dilacerantes dilemas, com que diariamente me debatia: ducheses, pastéis de nata, palmiers recheados, croisants de chocolate... todos me seduziam. A escolha afligia-me, mas a Dona Assunção nunca me apressava. Piscava-me o olho e dizia-me:
(...) - Escolhe à vontade, eu não vou a lado nenhum.
Instalávamo-nos no canto da pequena sala da padaria, jogando conversa fora, pondo em dia os meses de ausência. Fazíamos brindes, as garrafas de leite entrechocando-se sobre a mesa: à pandilha!, que é como quem diz, a nós, ao reencontro e às férias todas à nossa frente. Para selar o brinde engolíamos, solenemente, um golo generoso de leite de chocolate. E eu, finalmente convencido pelo aromático tabuleiro recheado de enormes bolas de berlim, directamente saídas do forno para o balcão da D. Assunção, acabava completamente lambuzado de açúcar e creme.
(...)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Cego

Cego. Fascinava-me a sensação. Tacteava ao longo das paredes, avançando lentamente. Bastava uma porta aberta – qualquer porta, qualquer interrupção na parede que me guiava – para me deixar momentaneamente sem referências. Entreabria os olhos, não conseguia evitá-lo, mas fechava-os com força antes de conseguir ver o que quer que fosse. Não valia batotas. Continuava a avançar, as mãos estendidas à minha frente para sentir o caminho. Em casa dos avós a vida era difícil para os cegos. Havia montes de tretas por todo o lado. No corredor havia uma cómoda e uma estante cheia de tralha – livros e jarras e pisa-papéis e a colecção de mochos da avó – e não podia cair nada, especialmente os mochos. A avó tinha mochos de todas as formas e feitios, de barro, de porcelana, de madeira, de metal, grandes, pequenos, havia mochos por todo o lado. Toda a gente lhe dava mochos. Quando a mamã ia viajar, trazia sempre um mocho para a avó. Os mochos da avó eram uma bênção, dizia a mamã, pelo menos sabia sempre o que havia de lhe oferecer – e isso, posso dizê-lo à confiança, era de facto um alívio para a mamã. A mamã detestava andar às compras, e nunca sabia o que havia de dar às pessoas no Natal.

Depois, passados o corredor e a estante dos mochos, havia as escadas. As escadas eram fáceis. Eram doze degraus e havia o corrimão, bastava segui-lo. Por isso, nas escadas o jogo dificultava, passava para outro nível. Tinha de as descer sem deixar os degraus ranger. O problema era que o único sítio onde se conseguia descer sem ranger era encostado à parede, mesmo muito junto à parede, e aí não havia corrimão a guiar-nos. E, mesmo junto à parede, era preciso descer devagar, pé ante pé, e às vezes não se conseguia evitá-lo. Um degrau rangia. O pior era o sétimo a contar de cima, o quinto a contar de baixo. Esse era mesmo difícil, era necessário muito, muito cuidado para não perder o nível. E não podia abrir os olhos, se os abrisse não valia, perdia na mesma.

Depois das escadas tinha de passar a entrada, o que também não era fácil. Havia uma mesinha com um naperon e o telefone e o cabide com montes de casacos pendurados. Eu sentia o telefone com os dedos, e os casacos, e passava a mão pelos chapéus-de-chuva e pelas bengalas do avô que estavam numa movelzito esquisito que só servia para isso, para pôr chapéus-de-chuva e bengalas – o avô tinha três bengalas, uma muito fixe com uma cabeça de cão no lugar de segurar, mas nunca o vi usar nenhuma. Eu passava os dedos na cabeça de cão e sentia o seu feitio, o focinho, as orelhas. Já uma vez tinha tropeçado nas botas de borracha do avô, que às vezes estavam por baixo dos casacos ou ao pé dos chapéus-de-chuva, mas isso normalmente era só no inverno.

Por fim chegava à cozinha. Passar a porta era fácil, mas depois tinha de atravessar o vazio até chegar à mesa. Quando tocava na mesa melhorava, mas tinha de tactear à volta para chegar ao meu lugar, o que era mau se já houvesse gente sentada. Quando estávamos só os quatro – eu, os avós e a Camila, era fixe, porque não havia ninguém pelo caminho. Mas se houvesse mais gente – os pais, ou os tios, ou alguém da vizinhança, tinha de tactear as costas deles até chegar ao meu lugar. E, pior ainda, às vezes decidiam mudar-me de lugar por causa de uma qualquer visita A avó começava logo:
- O que é que estás a fazer? Pára com isso e senta-te.

Quando eram os pais ou os tios, a avó não ligava muito, mas quando havia visitas ficava furibunda. Mas eu não podia parar. Só podia abrir os olhos depois de sentado no meu lugar. Se abrisse antes, perdia o nível. Perdia o jogo. Estava morto.