domingo, 20 de junho de 2010
Amigos
Dantes, quando eu era pequeno, mesmo muito pequeno, o Nosa estava comigo montes de vezes. Fartávamo-nos de brincar e eu podia sempre contar com ele. Viajava connosco, comia connosco – eu obrigava o papá a pôr mais um lugar para o Nosa, e o papá punha sempre. A Camila gozava comigo, mas nós não queríamos saber, o Nosa e eu. À noite dormia comigo e protegia-me de tudo – dos monstros debaixo da cama e do fantasma do armário, das brigas dos pais e das fúrias da mamã.
Quando eu era mesmo pequeno, costumava dizer que a culpa era do Nosa. O Nosa é que fazia as asneiras, não eu. Eu fazia tudo bem e a mamã podia gostar de mim. Mas ela passava-se, detestava o Nosa. Estava sempre a dizer que o Nosa não era real, que era uma mentira, que me batia se eu dissesse mentiras. E nessas alturas o Nosa não podia jantar, não podia sentar-se à mesa. Ela passava-se só de ouvir falar no Nosa. Não queria que eu fosse seu amigo.
O Nosa nunca se importou de assumir as minhas culpas, nem de passar fome por minha causa. Porque o Nosa é fabuloso. É forte, rápido e super inteligente. Não tem medo de nada.
Agora quase nunca estou com o Nosa. Não sei porquê, ele foi aparecendo menos, cada vez menos, e agora quase nunca vem. Só vem às vezes, quando a mãe anda pior e se vinga mais em nós. Nessas alturas o Nosa aparece à noite, só à noite, e dorme comigo. Falamos montes de tempo e eu conto-lhe tudo, todas as coisas que não conto a mais ninguém. Mas falamos muito baixinho, para ninguém nos ouvir. Para a mamã não ouvir. Se ela sonhasse que o Nosa ainda existe, que ainda falo com ele, nem sei! Acho que se passava de vez.
OK, eu sei que o Nosa não existe, está bem? Sei que é só um amigo imaginário. Mas não deixa de ser bem melhor que todos os outros amigos a sério. Quer dizer, a pandilha é fixe, e são meus amigos a sério, mas não posso falar com eles de certas coisas, não é? Com o Nosa posso. E depois, pode passar meses sem aparecer, mas quando eu preciso dele, quando eu preciso mesmo, ele vem sempre. Sabe sempre. Sabe tudo. É uma das coisas mais fabulosas do Nosa. É um rapaz como eu, mas é muito mais forte, e muito mais esperto, e nunca tem medo. Com ele eu também deixo de ter. É isso. O Nosa faz-me mais forte e mais esperto, quase como ele.
Ontem o Nosa apareceu, depois do papá se ter ido embora. E hoje está comigo de dia, pela primeira vez desde há montes, desde... sei lá, desde que eu era muito, muito pequeno, antes de entrar para a escola.
Por isso não quero ver ninguém. Porque ninguém entende o Nosa e ele assusta-se quando vê gente. E não há mais ninguém com que eu possa falar.
sábado, 22 de maio de 2010
A Vingança
.....Eu lembrava-me da campa. Escolhi-a de propósito, porque sei de cor onde é. E tem mesmo pinta. É uma das mais antigas, muito simples, apenas uma pedra branca cheia de manchas. Líquenes, acho que foi isso que a avó disse. São assim umas espécies de bolores, ou isso. Tem um nome e uma data que quase não se vêem. Lembro-me dela porque a rapariga morreu muito nova – com 13 anos, mais nova que a Camila – e era da família do avô, tinha o nosso apelido. E isso bastava.
.....O Miguel mordeu a isca:
.....- Qual bruxa?
.....- A minha avó bruxa. Não sabias? Anda daí, vamos vê-la.
.....Levei-os por entre as campas, manchas mais claras na escuridão da noite, até descobrir a campa que queria. Agachei-me ao lado dela e limpei a sujidade e os líquenes com os dedos.
.....- Dá aí uma vela. – pedi.
.....O Xana acendeu uma vela e passou-ma. A chama tremia e fazia mesmo medo, com sombras e montes de mistério à nossa volta. Há uma palavra muito fixe para isso – bruxuleava. A vela bruxuleava. Quer dizer que tremia. É mesmo uma palavra boa para uma história de bruxas. Aprendi-a na net à procura das histórias de fantasmas com o Xana.
.....Percorri a campa e as letras com a vela, lendo lentamente:
.....- Maria Francisca Menezes, 1832 – 1845.
.....Levantei o olhar e olhei-os um a um, terminando no Miguel. O avô dizia sempre que, para contar bem uma história, era preciso primeiro criar o ambiente.
.....- Era minha trisavó. – continuei muito baixinho. - Ou tetravó, não me lembro. Não interessa. O que interessa é que era bruxa. E muito poderosa. É o que diz a minha avó.
.....Fiz outra pausa para colar a vela à lápide (lápide é da avó, é o nome que ela dá às pedras das campas). O Xana acendeu uma segunda vela e eu colei-a também.
.....- Na minha família sempre houve bruxas e isso. São sempre as mulheres. Todas as gerações há uma. A minha irmã, sabes? – olhei directamente para o Miguel – A minha irmã é espírita (esta também tirei da net, espírita). Fala com os mortos, pede-lhes favores. É má como as cobras (esta parte é verdade). Eu nunca discuto com ela, pode ser perigoso (esta já não é, estamos sempre a discutir). Nunca se sabe o que é que nos pode acontecer...
.....Parei para olhar à volta. Como diz o avô, para criar suspense. E para deixar o medo entranhar. Um pouco de respeito nunca fez mal a ninguém, não é, e não convém provocar o irmão de uma bruxa...
.....- Bom, a Francisca. A Francisca nasceu com todos os sinais. Nasceu exactamente à meia-noite de uma sexta-feira treze e era a sétima filha da família. Sétima filha mulher, claro. Os homens não contam, só as mulheres da família é que são bruxas. Mas houve pior. Muito, muito pior: a mãe da Francisca morreu no parto e as corujas piaram a noite toda, desde a meia-noite até de manhã (parto é nascimento. Fixei a palavra porque tem muito mais pinta do que dizer nascimento).
.....Um pio de coruja ressoou no cemitério e eu dei um pulo. Demos todos. Era o Artur padeiro, como combinado. Ele imita o pio de montes de aves e nas sombras da noite nem se percebia que era ele. E mesmo sabendo, mesmo já tendo ouvido o pio à tarde, quando o padeiro fez a demonstração, fui apanhado de surpresa. Chegámo-nos mais uns aos outros, o Xana ao lado do Miguel como combinado.
.....- Desde pequenina que a Francisca tinha jeito. Sentia os espíritos da casa, adivinhava os acidentes antes de acontecerem, curava dores de cabeça só por pousar a mão na cabeça do doente... A avó da Francisca também era bruxa e ensinou-a desde pequena. Aos dez anos a Francisca era mais poderosa que qualquer outra bruxa da Giesteira e arredores (eu tenho dez anos. Dez anos é uma idade super fixe para ser super poderoso).
.....- Conhecia todas as ervas e chás e todas as rezas e feitiços. Conhecia a magia branca, de curar e proteger, e a magia negra, de amaldiçoar e matar. Sabia mais que a avó, que a tinha ensinado, e que a velha Quitéria, a curandeira da Giesteira.
.....A Quitéria é a mulher-a-dias da minha casa e parece um goblin. Detesto-a. Mete-se em tudo e acha que pode mandar na minha vida. Odeio-a. Sempre achei que ela tem mesmo cara de bruxa. Cara e nome de bruxa.
.....- E depois, a Francisca era linda. Parecia uma princesa. Nunca houve menina mais bonita em toda a Giesteira. Pelo menos é o que diz a minha avó. E a velha Quitéria era feia, gorda e cheia de verrugas, parecia um ogre. Por isso, as pessoas começaram todas a ir ter com a Francisca quando precisavam de ajuda.
.....O padeiro piou outra vez e eu voltei a dar um pulo. Eu e todos nós. A Clarinha teve um arrepio e chegou-se para mim. Dei-lhe a mão e tentei dar um tom tenebroso à voz:
.....- A Quitéria decidiu vingar-se e envenenou a Francisca. Tinha 13 anos.
Fiz um gesto teatral em direcção à campa e às letras gravadas.
.....- Desde esse dia, a Francisca volta para assombrar a Giesteira. Mas não assombra toda a gente, nem todo o sítio. Não.
.....Novo pio da coruja. O Xana tocou no pescoço do Miguel com a pena do espanador e o Miguel estremeceu. Olhou rapidamente por cima do ombro, tentando afastar a pena com a mão, mas ela já lá não estava, escondida na mão do Xana. Grande Xana.
.....- Que foi? – perguntei.
.....- Nada. – o Miguel abanou a cabeça.
.....- A Francisca volta para assombrar as pessoas más e invejosas, as pessoas que pensam que são melhores que os outros, - a pena tocou no pescoço do Miguel - as pessoas que batem nos mais fracos. Nessas noites, nas noites em que a Francisca volta, a coruja pia toda a noite, como na noite em que ela nasceu.
.....A coruja piou. A pena voltou a roçar o pescoço e o Miguel estremeceu. Bastava olhar para ele para ver que estava borradinho de medo.
.....- E nessas noites, nas noites em que a Francisca volta, não há protecção possível. Ela entra em todos os locais, todas as casas, onde quiser. Sabes porquê?
.....O Xana estava a postos, tudo pronto para o golpe de misericórdia (golpe de misericórdia é do papá, quer dizer para dar cabo dele de uma vez por todas).
.....- Porque se transforma e sai da sua campa. Transforma-se numa enorme aranha, mas não é uma aranha qualquer: é a Francisca.
.....A aranha de borracha estava colocada, bem colocada no joelho do Miguel. O Xana foi brilhante, o Miguel não deu por nada. Era a vez da Clarinha. Dei-lhe um safanão, para a lembrar. Ela apontou para a aranha e perguntou, numa voz cheia de medo (e que não era totalmente fingido, acho):
.....- Que é isso?
.....- E a vingança da Francisca será terrível. – terminei, em coro com um grito enorme e um salto brutal. A aranha voou para um lado e o Miguel para outro.
.....Levantámo-nos e falámos todos ao mesmo tempo:
.....- Que foi? Que aconteceu?
.....- A aranha. – o Miguel tremia como varas verdes.
.....- Que aranha?
.....Mas não havia nenhuma aranha. O Xana aproveitou a confusão para fazer desaparecer no bolso a pena e a aranha. Grande Xana!
.....E pronto, acabou a nossa visita ao cemitério. Foi fabuloso! Nem chegámos a usar a corrente ou a contar a história dos vampiros. Saímos quase a correr pelo jazigo e não houve mais visitas ao cemitério durante as férias. Vingança, doce vingança! Nunca percebi porque é que é doce. Também nunca percebi porque é que é um prato que se come frio. Que prato? Mas que é muito fixe, é!
.....Mas nessa noite sonhei com a Francisca e com a aranha e acordei cheio de medo.
.....
quarta-feira, 14 de abril de 2010
A Ponte Velha
O caminho da ponte velha desce muito, até ao rio e à ponte velha, e depois volta a subir do outro lado. É um caminho para burros e cavalos, não é para carros, diz a mamã. Mas nós já viemos de carro, no jipe do avô. Do outro lado há um carro, todo desfeito, a meio da encosta. Voou lá de cima, do IC. Da ponte do IC. Foi o Quim da bomba de gasolina, vinha com os copos, toda a gente sabe. Ficou todo aos bocadinhos, foi uma trabalheira para os bombeiros. Nós tentámos ir lá, para explorar o carro, mas não há caminho. Está no meio das rochas e do mato, e as encostas são muito, muito inclinadas. É um carro vermelho, mas está um bocado desbotado, como quando a mamã lava muito as camisolas. Está assim quase cor-de-rosa.
Da ponte velha dá para mergulhar, desde que seja mesmo do meio. O rio é muito fundo, aí. Fazemos concursos de mergulhos. A primeira vez é super difícil. A gente vê os outros a saltarem, os mais crescidos, mas não podemos. Eles nunca deixam, e nós não sabemos nadar. Depois começamos a saber nadar, mas o salto muito grande, mete mesmo medo. Mas isso já foi há montes de tempo, para aí quando eu tinha sete ou oito anos. Depois temos de ganhar coragem na primeira vez, a primeira vez custa. Mas depois, depois já não custa nada. Depois da primeira vez, é super fixe!
Fazemos concursos a ver que faz a maior bomba. Quem esparrama mais água (esparramar é da mamã, é o que ela diz sempre que eu tomo banho de banheira cheia. Esparramas a casa toda! Adoro banhos de banheira cheia. Quando eu era pequeno dizia sempre que eram banhos de emergência, mas a Camila fartava-se de gozar. Dizia que, no estado em que eu chegava da escola, era uma verdadeira emergência. Agora já sei que são de imersão). A bomba é assim: saltamos e encolhemo-nos no ar. Os joelhos no peito, a cabeça encolhida, os braços em volta dos joelhos. Uma bola, temos de ser uma bola. Uma bomba! Splash! Água para todo o lado. Esparrama água, montes de água. Salpica tudo. Vitória! Vitória!
Mas não sou o campeão, não consigo. Na bomba são os padeiros. Esparramam muito mais água, porque são gordos. Fazem as melhores bombas do mundo.
Depois nadamos até à margem. Só há um sítio para sair, nos outros as pedras são super afiadas, magoam montes, e não dá para trepar. Isto é outra coisa que aprendemos com os crescidos, ver onde é que eles saem. Mesmo no sítio onde dá para sair, as pedras magoam os pés. E as ervas. E as silvas. Andamos super devagarinho, com montes de cuidado, para ver onde é que pisamos. É demais, ver os outros a sair de dentro de água. Parecem super totós, atrasados mentais. Parecem a Ticha, que andou comigo na infantil. A Ticha é atrasada, ainda tinha fraldas aos 5 anos e não sabia falar, fazia Aaaah, e Ooooh, e dizia Meu! sempre que queria uma coisa. Os miúdos chamavam-lhe montes de nomes: def, anormal, estúpida, atrasada mental, e isso. Mas só se ninguém ouvisse. Se as professoras ouviam, ia tudo de castigo. A Ticha tinha uma doença, problemas de desenvolvimento, explicou-me o papá, por isso não era igual a nós. Depois foi para outra escola, uma escola especial para meninos com problemas de desenvolvimento. Foi o que o papá disse.
Quando vamos mergulhar da ponte velha escondemos as roupas. Temos um esconderijo só da pandilha, atrás de uma rocha, num sítio secreto. Porque, se não escondermos, escondem os outros. Se vier outro grupo, outros miúdos, escondem-nos a roupa. Não podemos deixar nada à vista. Uma vez apanhámos uns franganotes e escondemos a roupa deles. Foi bestial! Vê-los como uns totós, a andar todos tortos à rasca dos pés à procura da roupa.
(...)
segunda-feira, 8 de março de 2010
A padaria
(...) - Escolhe à vontade, eu não vou a lado nenhum.
Instalávamo-nos no canto da pequena sala da padaria, jogando conversa fora, pondo em dia os meses de ausência. Fazíamos brindes, as garrafas de leite entrechocando-se sobre a mesa: à pandilha!, que é como quem diz, a nós, ao reencontro e às férias todas à nossa frente. Para selar o brinde engolíamos, solenemente, um golo generoso de leite de chocolate. E eu, finalmente convencido pelo aromático tabuleiro recheado de enormes bolas de berlim, directamente saídas do forno para o balcão da D. Assunção, acabava completamente lambuzado de açúcar e creme.
(...)
domingo, 21 de fevereiro de 2010
Cego
Depois, passados o corredor e a estante dos mochos, havia as escadas. As escadas eram fáceis. Eram doze degraus e havia o corrimão, bastava segui-lo. Por isso, nas escadas o jogo dificultava, passava para outro nível. Tinha de as descer sem deixar os degraus ranger. O problema era que o único sítio onde se conseguia descer sem ranger era encostado à parede, mesmo muito junto à parede, e aí não havia corrimão a guiar-nos. E, mesmo junto à parede, era preciso descer devagar, pé ante pé, e às vezes não se conseguia evitá-lo. Um degrau rangia. O pior era o sétimo a contar de cima, o quinto a contar de baixo. Esse era mesmo difícil, era necessário muito, muito cuidado para não perder o nível. E não podia abrir os olhos, se os abrisse não valia, perdia na mesma.
Depois das escadas tinha de passar a entrada, o que também não era fácil. Havia uma mesinha com um naperon e o telefone e o cabide com montes de casacos pendurados. Eu sentia o telefone com os dedos, e os casacos, e passava a mão pelos chapéus-de-chuva e pelas bengalas do avô que estavam numa movelzito esquisito que só servia para isso, para pôr chapéus-de-chuva e bengalas – o avô tinha três bengalas, uma muito fixe com uma cabeça de cão no lugar de segurar, mas nunca o vi usar nenhuma. Eu passava os dedos na cabeça de cão e sentia o seu feitio, o focinho, as orelhas. Já uma vez tinha tropeçado nas botas de borracha do avô, que às vezes estavam por baixo dos casacos ou ao pé dos chapéus-de-chuva, mas isso normalmente era só no inverno.
Por fim chegava à cozinha. Passar a porta era fácil, mas depois tinha de atravessar o vazio até chegar à mesa. Quando tocava na mesa melhorava, mas tinha de tactear à volta para chegar ao meu lugar, o que era mau se já houvesse gente sentada. Quando estávamos só os quatro – eu, os avós e a Camila, era fixe, porque não havia ninguém pelo caminho. Mas se houvesse mais gente – os pais, ou os tios, ou alguém da vizinhança, tinha de tactear as costas deles até chegar ao meu lugar. E, pior ainda, às vezes decidiam mudar-me de lugar por causa de uma qualquer visita A avó começava logo:
- O que é que estás a fazer? Pára com isso e senta-te.
Quando eram os pais ou os tios, a avó não ligava muito, mas quando havia visitas ficava furibunda. Mas eu não podia parar. Só podia abrir os olhos depois de sentado no meu lugar. Se abrisse antes, perdia o nível. Perdia o jogo. Estava morto.
quarta-feira, 18 de março de 2009
Negro Destino
Superstição? Sabem lá vocês o que é superstição! Tinham de ser eu, de estar na minha pele, para perceberem exactamente o que é essa coisa da superstição… o dano que uma crença sem fundamento pode causar na vossa vida!
Imaginem! Imaginem o que é serem rejeitados sem qualquer razão, sem motivo, só porque sim. Imaginem o que é serem postos na rua, expulsos de casa, só porque sim. Verem-se sozinhos, abandonados, largados para morrer num canto escuro e frio, sem compaixão, apenas porque a cabeça dos homens parece comandada pela irracionalidade.
Imaginem o que é olhar em redor e ver a injustiça do mundo. Ver os vossos semelhantes no maior conforto, refastelados no sofá ou em frente à lareira, de barriga cheia e cama lavada, amados e apaparicados por todos ao seu redor. E vocês, só por capricho, obrigados a viver na rua, a subsistir dos restos deitados no lixo, enxotados, evitados por tudo e por todos, sujeitos à chuva e ao frio e à inclemência da vida. Só porque sim!
Imaginem! Imaginam maior azar? Por isso, não me falem de superstições! Sabem lá vocês o que é nascer um gato preto numa sexta-feira treze!
A Bruxa
A velha Quitéria, parteira da aldeia há 50 anos, é que conta a história. Diz ela que a garota já nasceu com os desígnios trocados. O primeiro sinal foi a coruja, que piou à meia-noite, quando a Teresa se esvaía no parto. A Quitéria jura que foi nesse momento, exactamente à meia-noite, que a cachopa nasceu, a sétima rapariga da casa. A mãe, desalentada, suspirou:
- Chamem-lhe Ana, como a minha avó.
E finou-se.
Foi só o princípio. Se pensam que ficou por aí, enganam-se! Conta a Quitéria que a bebé ficou esquecida no berço quando passava o funeral da mãe. Mau agoiro, toda a gente sabe. Pior: Maria, a irmã, viu o berço à porta e agarrou na criança, levou-a ao cemitério a despedir-se da mãe.
Nem o padre Manuel conseguiu contrariar o destino: entornou a água benta no baptismo da miúda!Há dúvidas? Quando a Ana passa, o melhor é desviar o olhar. É uma questão de bom senso.
domingo, 13 de abril de 2008
A Capela
.....No cimo da aldeia, sobranceira às casas e isolada num pequeno alto, a velha capela encontrava-se vazia. Também ela mantinha integralmente a arquitectura antiga, mas não a função. Ali não se praticava qualquer tipo de religião instituída, católica ou outra. Quem quisesse, claro, era livre de ali comungar com Deus, em qualquer das suas formas. A atmosfera adequava-se a isso, com a sua luz colorida filtrada por um velho vitral e as sombras bruxuleantes provenientes das velas existentes. E o velho altar, de talha dourada, com a estátua de Santo António embalando o menino, mantinha-se no seu local de sempre. Não era um altar muito rico, nem a estátua possuía qualquer qualidade artística particular. Mas eram genuínos, sempre ali tinham pertencido, e ali continuariam para a posteridade. Tal como o altar dos ex-votos, ali deixados durante eras por peregrinos e penitentes das serras em redor, porque, constava, ali se haviam realizado curas milagrosas em tempos recuados. Tão recuados, de facto, que a lenda era vaga, as versões aceites nas vilas serranas discordando nos pormenores. Numas versões o curandeiro milagroso fora uma jovem freira fugida, noutras um velho e sábio padre ou um monge de tonsura e hábito franciscano. A tosca estátua de madeira pintada, representando o curandeiro, não desfazia as dúvidas. De qualquer forma a personagem era religiosa, de hábito comprido e, e nisto concordavam todas as versões, cega. A lenda desse religioso cego e milagroso ainda era conhecida nas vilas em redor, que nas aldeias já não havia ninguém, e existiam duas ou três monografias académicas sobre a lenda. O Casal da Giesteira recuperara a sua colecção de ex-votos e mantinha-a em exposição numa das naves laterais, onde sempre tinham estado. E ainda recebia, esporadicamente, um ou outro velhinho dos arredores em peregrinação ou paga de promessa, que ali deixava uma fotografia ou outra lembrança, a juntar às existentes.
.....O Sérgio sentiu-se imbuído por uma solenidade respeitosa ao penetrar naquele espaço. É curioso, pensou, como uma capela, por pequena que seja, continua a inspirar este sentimento mesmo a quem seja ateu de pai e mãe, como ele, e completamente alheio a qualquer sentimento religioso. É algo nas proporções, na luz e nos cheiros, matutou o Sérgio enquanto percorria a capela.
.....(...)
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008
O Comandante
Gosto de pensar que torno a vida de cada lote um pouco mais suportável. Gosto de pensar que a minha presença refreia um pouco a brutalidade de tudo isto.
O trabalho é uma merda, é um facto. Mas são as ordens que tenho, há que cumpri-las o melhor possível. Há que fazer a triagem com frieza, sem emoção. Não me envolver. São gado, assim os devo encarar. Gado como qualquer outro, para trabalhar ou para o abate. Tão simples como isso. As regras são estas, tenho de me ater a elas. As regras são fáceis.
Distância. Distância total. Não sentir nada, não criar contacto. Estar presente, refrear os excessos. A minha simples presença refreia a veia sádica dos homens. Na minha presença controlam-se. Sei que sou temido. O meu pessoal teme-me e odeia-me. Odeia-me e difama-me. Sei o que dizem. Que o comandante é um louco e um frouxo, não serve para este trabalho. Que o comandante é um fraco, não os tem no sítio. Eu sei. E estou-me nas tintas. Estou-me nas tintas para a opinião destes trastes, sádicos de merda a quem deram rédea solta.
Sei o que se diz à boca pequena. Que o comandante tem as lealdades trocadas. Que o comandante se importa mais com a escória que com os seus homens. Que o comandante não permite espancar a escória, mas açoita os seus homens sempre que lhe convém. Que o comandante não é leal ao Fürher, que é amigo dos judeus. Devia ter medo destes vampiros, do que possam fazer constar. Do que possam dizer de mim. Mas não tenho, não quero saber.
Hei-lo que chega, o meu novo comboio. Só isso importa. Um milhar de judeus. Devo separá-los, dividi-los. Está nas minhas mãos decidir. E decido. Quem morre hoje nas câmaras de gás, quem vive mais um pouco nos trabalhos forçados. É o meu dever, a minha função. Porque é quem eu sou. Sou o Comandante do Campo de Concentração.
quarta-feira, 2 de janeiro de 2008
Ruanda
Mas não. Não me cortam nem me trespassam. Arrastam-me com eles, entre cânticos e urros. Sou um deles, sou um Hutu, por isso não morro. Não já, pelo menos. Não enquanto gritar como eles, entrar na loucura colectiva.
Estou entre eles, no meio da turba. Sou arrastado pela multidão. Põe-me algo na mão, uma catana talvez. Não, uma enxada, a lâmina escura e pegajosa, de sangue naturalmente.
Percorremos a rua e o ritual repete-se. Entramos nas casas que tão bem conheço, um bando furioso e ululante, uma tribo aterrorizante e barulhenta. Vejo os vizinhos de toda uma vida, o terror profundo espelhado nos olhos, de arma em punho e a engrossar as fileiras. Recrutas à força.
Conheço esta rua como as palmas das mãos. Conheço cada um dos seus habitantes desde tempos imemoriais. E é isso que mais me horroriza. Porque sei, sei perfeitamente que na próxima casa o ritual será diferente. Porque ali não moram Hutus. Moram Tutsi. Conheço-os desde sempre, jogamos à bola desde miúdos.
A cena repete-se: a porta arrombada, o terror nos olhares. Os gritos e urros e cânticos de guerra. Arrastam todos para a frente da casa. São tantos! Há o velho e os dois irmãos, homens da minha idade, miúdos comigo. Há as crianças, três pequeninos a chorar de terror. E há a mulher, a pança inchada de boa parideira, mais um Tutsi para povoar este mundo.
Empurram-me para a frente, a mim e aos outros, meus vizinhos recém recrutados. Temos de mostrar de que massa somos. Da massa dos Hutus, verdadeiros guerreiros, ou de sangue diluído e aguado, dos fracos e cobardes.
A família vê-nos à frente da turba. O alívio transparece nos olhares assustados. Afinal somos vizinhos, amigos de infância e gente de bem. A esperança renasce nos rostos transidos.
Atrás de mim o barulho é terrível. Urram excitados e incitam-nos à acção. Somos empurrados de novo para a ribalta. Sabemos, não há fuga possível. São eles ou nós. Não há salvação. Não para eles, de qualquer maneira. São Tutsi, raça inferior, raça danada, não são como nós. Há duas opções: morrem eles ou morremos todos, nós com eles.
Evito o olhar do meu vizinho, do meu companheiro do jogo da bola. Não quero olhá-lo. Se o olho perco a coragem. Lembro-me como era em pequeno, um minúsculo filho da puta, com a mania que mandava em nós. Era um pequeno tirano, sadicozinho com os mais novos. Um filho da puta como eles todos, os Tutsi todos estuporados. Não quero olhar para a mulher prenha, para os miúdos em pânico. Olho para ele, para o meu companheiro, e invoco todas as ofensas que me fez em pequeno. Inspiro fundo e ergo a enxada. Sinto-me outro que não eu próprio, olho tudo como se estivesse de fora. Vejo a enxada descer sobre ele, o meu companheiro dos velhos tempos. Racha-lhe o crânio de alto a baixo.
É a euforia. A multidão canta, embriagada. Pelo canto do olho vejo-os cair, a mulher prenha e os miúdos medrosos, o velho cobarde encolhido a um canto.
A multidão exulta, e eu exulto com eles. Sinto-me embriagado pelo sangue e pelo medo. Sou levado em ombros com mais dois ou três dos recém baptizados. Agora sim, somos homens de facto, Hutus a sério. Agora sim, podem orgulhar-se de nós.
Somos depostos e continuamos em frente. Os cânticos ecoam na minha cabeça. À frente há mais casas, há Tutsi sem fim. À frente há muita limpeza para fazer. Continuo com os meus irmão, eufórico, embriagado. Afinal, são só uns Tutsi.
terça-feira, 23 de outubro de 2007
El-rei D. Leão da Selva
Os bichos mandou chamar,
Estava muito indisposto
Queria festa para animar.
El-rei d’ alma enfastiada
Só queria diversão
Chamou toda a bicharada
Para mimar el-rei Leão.
Foi assim que lá na selva
Houve grande confusão
A bicharada na relva
Numa mega reunião.
Veio um macaco pintado,
Um belo malabarista,
Ficou el-rei deslumbrado
Com o jeito do artista.
Depois veio o crocodilo
Com artes de imitador.
Veio de longe, do Nilo,
Fez d’ el-rei, nosso Senhor.
Depois o mestre elefante
A tromba veio tocar
Com o seu porte gigante
Até se pôs a dançar.
Chegou a bela serpente
Dançou ao toque da tromba,
Animou-se toda a gente
Foi uma festa d’ arromba!
Esqueceu-se dos bocejos,
Deu à juba animado
E ditou os seus desejos:
Decretou que d’ ora avante
Todo o dia haja festança
Pois se até mestre elefante
Hoje brincou que nem criança!
Foi assim que D. Leão,
O rei triste e descontente,
Se tornou D. Brincalhão,
sábado, 13 de outubro de 2007
A escola
Hoje já escapei. É a minha vantagem, a minha única vantagem: a rapidez. Porque eu sou rápido. Pequeno mas rápido. Posso sempre correr mais que eles. E eu sou esperto. Conheço cada buraco desta espelunca, cada esconderijo. E os brutos não me podem apanhar.
Odeio-os. Odeio-os a eles e odeio-me a mim. Porque tenho medo. Não sou corajoso e prefiro esconder-me. Prefiro enfiar-me na casa de banho, encolher-me aqui durante horas a fio. Passo as horas a ler histórias de aventura, histórias de heróis como eu nunca serei. Porque eu sou um cobarde. Morro de medo daqueles mentecaptos. Quem me dera ser bem grandalhão, mesmo que tivesse de ser mentecapto.
Hoje já estou safo. Na 5ª feira deixei-me apanhar. Disse à mãe que tinha brigado, escolhi um miúdo mais pequeno que eu. A mãe ficou furiosa, mas antes furiosa que preocupada. Se ela percebe ainda faz queixa, e se ela faz queixa quem paga sou eu. Fui bem avisado. Se alguém descobrir, dão cabo de mim. Antes quero a mãe furiosa, sem pena de mim ou dos meus arranhões. Antes quero ficar de castigo, todo o sábado fechado sem sair do quarto. Não me importo. Tenho os meus livros e o meu computador. Quem me dera que fosse sempre sábado!
A mãe nem sonha. Acha que estou a ficar um rufia. Outro dia recebeu uma carta da escola, a informar que eu falto às aulas. Ia tendo uma coisa má. Pensa que eu ando em más companhias. Nem ela imagina, quão más elas são! Disse-lhe que ia ao café, jogar matraquilhos. Quem me dera poder! Escusava de ficar aqui toda a tarde, nesta sanita fria e desconfortável.
Abro a mochila e tiro a caixa. Costumava estar na mesinha da sala, trancada a sete chaves, mas já há uns tempinhos que a tenho escondida. De dia anda comigo na minha mochila, de noite descansa debaixo da cama. Ninguém deu por isso. Todas as noites abro aquela caixa, pego nela e acaricio-a. Imagino que a uso um dia na escola, e por uma vez vou ser eu o herói. Por uma vez vão ter medo de mim. Se ao menos eu tivesse coragem... mas eu vou ter! Encho-me de coragem e decido que é hoje. Hoje eu vou ter!
Agarro-a bem com as duas mãos. Tenho de ser forte, não posso tremer. Atravesso o pátio completamente vazio. A minha aula já começou. Bato à porta e o professor abre. Começa a ralhar por causa do atraso. Não lhe dou tempo. Disparo uma vez, duas, três... disparo outra e outra vez. Depois viro as costas e desato a correr.
domingo, 30 de setembro de 2007
Vizinhos
No cemitério está escuro. Escuro como uma noite escura de Inverno. E chove, uma chuva gelada e desconfortável.
Espreito o grupo. Debaixo dos amplos guarda-chuvas aguardam. Ouvem o arrazoado do padre gorducho, impacientes. Mudam o peso de um pé para o outro e maldizem o morto, que escolheu péssimo dia para decidir morrer. Não vêem a hora de isto acabar, de se irem embora para o quente de casa.
Também eu aguardo, impaciente. Aguardo que eles terminem para voltar para casa. Não posso entrar enquanto por aqui andarem. Também eu não vejo a hora de acabarem.
Eu espreito o grupo. São gente rica, cheiram a dinheiro. As roupas são caras e o jazigo é enorme. Enorme e antigo, cheio de nossas senhoras e anjinhos reboludos, quase tão reboludos como o padre ao fundo. Um jazigo de família, rico e ornamentado. Mas não como o meu. O meu é melhor, um dos melhores.
Olho para eles, estudo-os bem. Afinal, é útil conhecer os vizinhos. E esta gente é minha vizinha. O jazigo deles fica mesmo aqui, paredes meias com o meu. Nunca cá tinham sequer aparecido. Será que agora passarão a cá vir, ver o morto de hoje? Virão aos domingos, prestar homenagem ao finado?
O padre calou-se, a cerimónia termina. O grupo despede-se, está de saída. Dispersam-se e passam em grupos menores. Passam por mim sem sequer me notarem, ou notam-me com um olhar de nojo profundo. Nada de novo, estou habituado.
Foram-se embora, posso entrar. Entreabro a minha porta, desconfiado. O meu jazigo descansa em paz. Os meus cobertores ainda cá estão, dissimulados ali naquele canto. As minhas latas não foram mexidas. Tiro do bolso o pacote de vinho, o naco de pão e instalo-me para a noite.
Espero que não tornem. Não quero vizinhos.
terça-feira, 4 de setembro de 2007
Madame Rose IV (e último)
O consultório foi um passo importante. A Rosinha decorou-o com esmero, investindo os primeiros lucros no visual, no seu e no do consultório. Tudo à grande. Metamorfoseou-se em Madame Rose à séria. O pessoal da vizinhança, as mulheres sobretudo, não se fizeram esperar. Batiam no vidro da cozinha do nº 6 da Travessa dos Inglesinhos, ao fim da tarde ou depois do jantar, para marcarem hora com a Rosinha. Com a Madame Rose, perdão!, que ela não era mulher de diminutivos ou de intimidades. E não era tonta como a Mãe Joana Preta, que dava consultas ao preço da uva mijona porque o seu coração, demasiado brando, se compadecia das misérias dos seus conterrâneos. A Madame Rose fazia-se pagar, e não era barata!
No liceu, cultivou amizade com as meninas de boas famílias, que a toleravam e amimavam como quem amima um macaquinho de estimação. A Rosinha, feia e deformada, mas que faz cabriolas divertidas com cartas e sinas e previsões várias. A Rosinha, a atracção do momento nos chás e nas tardes das meninas do Liceu.
A Rosinha, que de parva não tinha nada, sabia-se palhaço de circo. Mas, sabida como ela só, calava-se e representava, conquistando aqui e ali mais um crente fiel, estabelecendo uma rede de clientela. E não tardou a que as senhoras mandassem a criada marcar hora com a Rosinha, que as recebia com chá e bolinhos, servidos pela apagada Florentina.
E a fama da Rosinha cresceu.
Hoje a Madame Rose é a bruxa da moda, com consultório em pleno Bairro Alto, procurada por gente de diversos quadrantes: um ministro e três ex-ministros, políticos de todos os credos, gente do teatro e das artes, jornalistas conhecidos e intelectuais vários, empresários de sucesso, eu sei lá... só a nata da sociedade, que ao povinho a Madame não atende e os preços são proibitivos.
O nº 6 da Travessa dos Inglesinhos está irreconhecível, transformado que foi num consultório de luxo, obra de uma decoradora de renome (e cliente fiel da Madame Rose).
A Madame Rose, o esqueleto deformado e a alma negra, emana um misto de encanto e terror que atrai irremediavelmente certas personalidades, como um íman potente. Na Madame Rose confiam para gerir os seus destinos, o das suas empresas, o dos seus partidos. À Madame Rose recorrem para realizar os seus trabalhos: remover algum escolho, algum empecilho que ameaça no campo profissional ou pessoal. Porque a Madame Rose não tem escrúpulos, diz-se, e tem uma alma negra como a escuridão. Porque a Madame Rose é malévola, consta, e gosta dos trabalhos escuros, dos maus olhados, dos feitiços malignos. Porque a Madame Rose é só espinhos, a flor murcha desaparecida há muito. Porque é a Madame Rose.
domingo, 19 de agosto de 2007
Madame Rose III
A Mãe Joana Preta, a mais improvável das companheiras, abriu novos horizontes na vida da Rosinha Silva. A Mãe Joana e os seus búzios, as suas macumbas e os seus maus e bons olhados. A Mãe Joana, íntima das almas boas e menos boas - e de algumas verdadeiramente maléficas - que povoam o além. A Mãe Joana Preta, contra todas as expectativas, conseguiu penetrar a couraça da Rosinha Silva e tomou-a como aprendiz e fiel depositária da sabedoria ancestral de que era portadora.
E assim se iniciou a educação da Rosinha, que revelou uma queda particular para estas ciências. Aos dez anos de idade a Rosinha tinha uma mente completamente lúcida. Sabia que a sua vida tinha mudado de rumo e percebeu a utilidade das novas valências. Pôs a sua arguta inteligência ao serviço da aprendizagem e rapidamente se tornou perita na decifração dos padrões dos búzios, das folhas de chá, e nas artes subtis da adivinhação. Absorvia os ensinamentos da Mãe Joana com avidez, e depressa leu uma mão como um livro aberto. Quando a Mãe Joana abandonava o Hospital para se dedicar aos outros afazeres (dava consultas durante as tardes) e as enfermeiras se encontravam ausentes, a Rosinha praticava as artes recém adquiridas nas outras crianças internas, manipulando os seus medos e dores com malevolência.
As enfermeiras, pelo contrário, conheciam uma Rosinha doce e dócil, com tendência para se tornar a vítima da restante criançada. Uma Rosinha resignada cujo esqueleto, sabiam, ficaria deformado para sempre. Uma Rosinha que nem sonhavam ser um logro tão absoluto. Assim, sempre que algum novo residente se queixava da Rosinha, descobria da pior forma que ela era intocável, a mascote do corpo de enfermagem.
Quando, dois anos e nove meses volvidos, a Rosinha teve alta da Estefânia, deixou saudades à Mãe Joana e às enfermeiras. Não reconheciam a Enfermaria 2 sem a presença da menina coxa e vagamente corcunda que já pertencia à mobília. A Rosinha, pelo seu lado, também não reconhecia como lar o nº 6 da Travessa dos Inglesinhos. O Quim Zé quase não aparecia, namoradeiro como ele só, e a proximidade entre irmãos esfumara-se com os anos. A mãe Florentina, sempre apagada, fazia-se pequena na presença da filha, que era uma personalidade dominadora e malévola. A Gertrudes, que permanecera a amiga da Rosinha, rapidamente descobriu que era necessário um enorme tacto e um grande poder de encaixe para lidar com a adolescente rancorosa em que a Rosinha se transformara.
Mas a Rosinha sabia ser encantadora sempre que tal se afigurava compensador. De volta ao liceu feminino, depressa montou o negócio. Arranjou um baralho de Tarot e deitava as cartas em troca de presentes. Outras vezes lia a sina nas mãos das colegas. Moedas, doces, peças de roupa, lenços e laços, tudo a Rosinha aceitava. Vaticinava às colegas futuros risonhos, namoros e casamentos com rapazes de sonho, sucesso nos estudos às mais ambiciosas, que sonhavam seguir para a faculdade. De vez em quando lá dava o gosto ao dedo e predizia um acidente violento, um infortúnio ou uma morte precoce a alguma colega mais odiada, fingindo-se relutante e horrorizada com o destino. Descobriu uma nova forma de poder, com que muito se divertia. Conseguia pôr as moças mais crentes a fazer exactamente o que queria com conselhos judiciosamente administrados, gerindo a vida das colegas a seu belo prazer. E dava-lhe um enorme gozo ver as meninas do liceu feminino dançarem o fandango ao ritmo da Rosinha Silva.
Recolhia a informação discretamente. Afinal, tinha anos de prática de espionagem, apurada nas perseguições ao Quim Zé e nos corredores entre enfermarias, e um dom esmerado para ler nas entrelinhas, nos gestos e na linguagem corporal. Conhecia os sonhos e segredos de toda a gente e jogava com as ambições das interlocutoras. E divertia-se imensamente.
...
(Continua)
sábado, 4 de agosto de 2007
Madame Rose II
De pequenino o Quim Zé teve a incumbência de cuidar da irmã, devendo zelar pela sua segurança em todas as situações, substituindo-se ao pai ausente e à mãe apática. Mas com a entrada na adolescência, o Quim Zé deu por si a evitar por todos os meios a presença da irmã. Chamava-lhe a sua sombra, o seu apêndice, a sua carraça.
A Rosinha, furtiva de pequenina e ofendida no seu amor próprio, criou o hábito seguir e espreitar o Quim Zé. Assim descobriu os pequenos segredos do irmão, os primeiros arremessos da vida adulta: as beatas fumadas às escondidas, os primeiros bagaços na Leitaria do Ti Apolónio, as primeiras surtidas ao liceu feminino, a controlar a saída das meninas. Com o tempo a Rosinha foi acumulando uma sabedoria sobre o Quim Zé e a restante miudagem do bairro, sobre as suas actividades e segredos, que reservou para eventualidades futuras e que se veio a revelar de bastante utilidade.
Aconteceu numa tarde tórrida do princípio do Verão, à hora mais quente do dia, quando da Calçada do Combro se elevavam ondas de calor que distorciam a visão. Foi uma Rosinha de dez anos e tranças espetadas, irritada e afogueada pelo calor, seguindo o irmão pelas vielas do Bairro Alto e perguntando-se se não seria melhor esquecer, pelo menos por hoje, a sua perseguição, que cometeu o grande descuido da sua vida: deixou-se apanhar pelo Quim Zé e pelo Manel da Leitaria. O irmão agarrou-a pelo braço, os dedos mais apertados que um alicate, abanou-a com uma fúria transbordante e ameaçou, num rosnido:
Não é que a Rosinha tivesse demasiado medo do irmão: o Quim Zé era assim, só fogo de vista, um daqueles cães irritantes que ladram mas não mordem. Um bluff, em suma. E a Rosinha sabia-o. Estava mais danada consigo, por se deixar apanhar, que amedrontada pela bravata do Quim Zé. Aproveitou um momento de maior frouxidão e safou-se do aperto, largando a correr para casa. Foi no momento em que se virou para trás, a meio da corrida, para gritar, num desafio:
- Ui, estou a morrer de medo. Tu és tão mau, tão mau...
que o carro a colheu e a atirou pelo ar, num voo planado de vários metros.
A Rosinha deu entrada no Hospital da Estefânia, onde ficou internada pelo exíguo período de dois anos e nove meses.
O irmão Quim Zé visitava-a amiúde, sentindo-se responsável pelo acidente. Mas com o passar do tempo a Rosinha, que sempre o culpou pelo acontecido, foi-se tornando arisca e agressiva, só espinhos sem rosas. E o Quim Zé, adolescente com assuntos prementes e inadiáveis em mãos, espaçou as vistas até se esquecer de aparecer por completo.
A mãe Florentina, pessoa dada a rotinas, visitava-a duas vezes por semana, às quartas e aos sábados. Era regular como um metrónomo e a mãe Joana Preta habituou-se a acertar o relógio da enfermaria pelas idas e vindas da Florentina. Instalava-se na cadeira à beira da cama, com o seu trabalho de costura, e deixava-se ficar, quase sem pronunciar palavra, até soarem as badaladas das cinco da tarde. Nessa altura guardava o trabalho na cesta, beijava a Rosinha na face e ia à sua vida vazia de significado. Mãe e filha pouco encontravam que dizer uma à outra.
A única visita que enchia de sol a vida da Rosinha, agora como sempre, era a Gertrudes da frente. Nunca se sabia quando viria: podia aparecer vários dias seguidos ou permanecer um mês desaparecida. Mas quando vinha, trazia a sua alegria esfuziante e a Rosinha perdoava-lhe prontamente as ausências. Esquecia o ódio negro que crescia no seu coração solitário, que alimentava nas longas semanas em que a Gertrudes faltava, e recebia a amiga com uma gratidão doentia. E a verdade é que, apesar da irregularidade das visitas, a Gertrudes nunca deixou de aparecer e de amimar a doente.
Do carro que atropelou a Rosinha Silva nunca se soube pormenores. Desapareceu pela calçada abaixo sem sequer olhar para trás.
sábado, 21 de julho de 2007
Madame Rose
Em pequena, filha de uma menina remediada de aldeia e de um charlatão Lisboeta, até prometeu. A mãe cedo se empenhou na sua educação, ensinando-lhe com mestria a arte do passajado, do bordado e do ponto de cruz. Imaginava uma carreira promissora como modista de bairro ou, em alternativa, dotava-a dos atributos indispensáveis a qualquer menina casadoira que se prezasse.
Já o pai, centrava os seus esforços a educação do Joaquim José, o filho primogénito. Colocou grandes esperanças na sua educação e iniciou o seu treino nas finas artes da intrujice. Mas o rapaz saiu-lhe uma decepção. Coração mole por natureza, pouco persistente nas tarefas e com tendência para facilmente se traumatizar, não levava jeito no ramo.
O pai culpava a mãe. Dizia ser dela a má influência, que amolecia o rapaz. A mãe calava-se, já que era de seu feitio e educação a passividade perante os homens em particular e a vida em geral.
Rosinha, de nome artístico Rose, nunca interessou ao pai. Tinha o defeito supremo, jamais ultrapassável, de ter nascido mulher. Por tal, o pai nunca chegou a descobrir ser esta a filha por que o seu coração ansiava, alma gémea, capaz de o seguir e com ele aprender as subtilezas da profissão.
Assim, mercê do preconceito do pai, a Rosinha teve de traçar sozinha os seus caminhos na vida.
O Joaquim José, Quim Zé para os amigos, bem feitas as contas e passado o primeiro rancor de primogénito destronado do papel de Ai Jesus da família, mostrou-se um irmão dedicado. Assim que a Rosinha conseguiu alinhavar os primeiros passos, o Quim Zé fez sua a tarefa de lhe mostrar o mundo. Exibia a irmã como quem mostra o brinquedo de estimação.
A relação entre os irmãos teve alguns incentivos, a saber: a depressão apática da mãe, que a custo lá ia assegurando existência material dos filhos (não passavam fome nem andavam nus, há que dizê-lo com frontalidade), e o desinteresse do pai que, entre negócios escusos e uma amante fadista, não dispunha de tempo para entreter os petizes.
Por isso o Quim Zé, que era de se enternecer com as dores alheias, tomou a irmã a seu cargo. E, contra todas as expectativas, deu por si a gostar mesmo dela.
Já a Rosinha era de outra água. De pequenina apenas gostou de si própria e da Gertrudes. Mas, calculista de nascença, percebeu que o irmão era o seu fiel guardião e não o maltratou em demasia. Pelo contrário, habituou-se a usar o Quim Zé como seguro contra todos os riscos, inerentes às confusões a que era propensa.
E assim se criou um ritual, que se perpetuou até ao ‘acidente’: a Rosinha metia-se em trabalhos, exercendo e treinando, para contingências futuras, a sua maldade inata, e o Quim Zé tirava-a dos sarilhos, não raro à custa de algumas amolgadelas na carroçaria.
Nestes entremeios, enquanto os miúdos cresciam, o pai não ficava inactivo. A modesta quantia que a mãe trouxera de dote foi diligentemente investida em projectos de futuro. A saber: uma casa para a amante fadista e vários negócios pouco claros. Findos este trâmites, e esgotados os fundos de investimento, uma acção se impunha: a mudança.
Quando o Quim Zé contava 8 anos e a Rosinha 4, o pai saiu um dia para comprar o clássico maço de cigarros e não mais voltou.
A mãe, Florentina de seu nome, sacudida na sua letargia, levou a mal esta alteração do seu ritmo de desgostos. Depois de chorar três dias a fio encontrou enfim com que se alegrar: estava livre da presença opressiva do amantíssimo esposo.
Embora não de iniciativa própria, que a tanto não chegava o desembaraço da senhora, antes instigada pela maledicência e intriguice da vizinhagem, Florentina agiu pela primeira vez na sua vida. Tomou-se de brios, vestiu o vestido de ir ver a Deus, e foi à polícia dar parte do desbarato da sua herança.
Graças à conhecida celeridade das investigações policiais e consequentes processos judiciais, o pai continuou a viver no bairro com a amante fadista e com ela produziu mais um rebento, mas estas são contas de outro rosário, do qual daremos conta mais à frente.
E a Rosinha? A Rosinha ia crescendo e florescendo, mais espinhos que rosas. Para além do irmão Quim Zé, outra grande influência moldou a infância da Rosinha Silva: a Gertrudes do lado.
A Gertrudes era uma adolesceste vistosa e atrevida que vivia pendurada à janela de casa, no rés-do-chão do nº 8, namoriscando todos os rapazes e senhores que lhe passavam ao alcance da vista. Com o passar dos anos assumiu a vocação que Deus lhe deu e profissionalizou-se, sendo o consolo e a reserva de sanidade de muito pai de família no Bairro Alto e arredores. Como a própria Gertrudes gostava de afirmar, se já tivesse o negócio montado na altura, certamente o Miguel Silva não teria arranjado uma amante fadista nem teria abandonado o lar.
A Gertrudes era desbocada e ordinária, lá isso era, mas tinha um coração de ouro e uma alegria crónica e contagiosa, que transbordava para a casa ao lado. Era a única pessoa que conseguia atravessar as brumas da depressão da mãe Florentina e trazer algum ânimo ao nº 6 da Travessa dos Inglesinhos. Por ela, e só por ela, a Florentina suspendeu a sua moralidade retrógrada de menina de aldeia, dedicando-lhe uma amizade profunda e sem reservas. E por ela se apaixonou irremediavelmente a pequena Rosinha, tomando a Gertrudes como modelo de vida e dela bebendo avidamente cada palavra. Copiava-lhe os meneios e maneirismos, os ditos e piropos. Se alguém se interessasse e lhe perguntasse, a Rosinha diria que, quando crescesse, queria ser puta de bairro como a Gertrudes do lado.
sexta-feira, 6 de julho de 2007
O Dia D
Hoje saí e sentei-me no banco. Não muito tempo, que já não consigo. Canso-me demais. Mas queria despedir-me. Do sol, e do dia, e do ar livre, mesmo com cheiro a escape. Mas é melhor do que nada, é mais do que eu tenho tido. E posso sempre fechar os olhos, sob os raios de sol, e pensar que estou na praia ou num bosque frondoso.
Hoje é um dia bom. Na maior parte dos dias não me levanto, estou fraco demais. Dormito e medito, vegeto apenas. Mas hoje não. Hoje é um dia bom. Ainda existem, cada vez menos mas ainda existem.
Não quero viver assim. Não quero morrer aos poucos, devagar, sem acordo de mim. Não quero impor-me essa morte nem impô-la aos outros. Não me quero impor a ninguém, muito menos àqueles que amo, corroendo o amor com a degradação de um fim doloroso, indigno. Não quero ser um velho moribundo e sofredor, incapaz de tratar de si. Quero que me recordem assim, como estou hoje. Ou melhor, como era há um ano, há dois, antes de tudo isto, antes do princípio do fim.
Está decidido há muito. A decisão está tomada, está tudo a prontos. Sou precavido, sempre fui. Tenho tudo o que necessito. Tratei disso há mais de um ano, enquanto podia. Quando soube que era desta, que desta era de vez. Hoje é o dia. Vai ser pacífico. Vou morrer como quem dorme, num sonho infindo.
É esta noite. Quando todos dormirem, quando não houver movimento, será a hora. Posso esperar, é a vantagem da insónia. Posso esperar calmamente. Então, quando todos dormirem, tomo os comprimidos. A embalagem toda, por via das dúvidas. E depois, Ah, depois... depois instalo-me na minha velha poltrona, à janela, preparo um whisky e acendo um cigarro. As saudades que eu tenho de um whisky, Deus meu!, e de um cigarro!
Da minha velha poltrona vejo um pedaço de céu, negro e estrelado. Recosto-me e saboreio. E quando Ela chegar, hei-de dar-lhe as boas vindas.
segunda-feira, 2 de julho de 2007
Quando eu for grande
Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!
Quero ser o Pai Natal,
Não quero ver ninguém triste,
Não quero ver ninguém mal.
Quero dar prendas a todos,
Quero todos bem contentes,
Não quero ver ninguém triste,
Quero todos com presentes.
É a melhor profissão
Pai Natal é que eu vou ser
Vou viver no Pólo Norte
Onde o frio é a valer.
Ser Pai Natal é bem fixe,
E depois, para além de tudo,
Posso ter fato vermelho
Ser barbudo e barrigudo.
Posso entrar nas chaminés,
Deixar a prenda na meia
Posso voar no trenó
Não é uma boa ideia?
O Pai Natal é bem fixe,
Faz toda a gente feliz,
Ser um grande Pai Natal
sábado, 23 de junho de 2007
Não voltarei
Hoje dela restam quatro paredes, esburacadas qual boca cariada. As janelas abrem-se para o vazio, olhos cegos ao mundo.
Entro. Os fetos crescem, por todo o lado. Da segunda janela da esquerda, onde um dia foi o meu quarto no inacessível primeiro andar, uma animada ramada de mimosa espreita a rua, incongruente no seu amarelo vivo. Ali está, a casa da minha infância, onde passei férias encantadas na companhia dos meus avós.
Recordo a avó, pequenina e engelhada, a cara viva e os olhos brilhantes reflectindo as labaredas do fogo. Aterrorizava-me com as peripécias das antepassadas bruxas. Depois, vendo-me transida de medo, consolava-me com abraços rápidos e enormes nacos de pão barrados com compotas caseiras. Ensinava-me as tradições da família, dizia, preparava-me para assumir a herança de uma estirpe de grandes bruxas, da qual ela era a orgulhosa representante e eu a semente futura.
Recordo o avô, grande e calado, deixando as despesas da conversa com a avó. O seu refúgio era o seu bote a remos, no qual passava os dias fumando cigarros e ensinando-me a pescar.
Nunca mais os vi. Não sei o que lhes aconteceu. Desapareceram completamente, sem deixar rasto. Quando voltámos, quando nos foi permitido voltar, já cá não estavam. Nem eles nem ninguém que os tivesse jamais conhecido. Desapareceram pura e simplesmente, como se nunca tivessem existido.
E a casa neste estado. Há um buraco em particular que atrai o meu olhar. Não sei porquê, é igual aos outros todos, aos inúmeros buracos que enfeitam a nossa parede. Sem dúvida buracos de bala.
A custo desprendo o olhar do buraco, da parede. Percorro a casa. Só o rés-do-chão, claro, do andar de cima não resta nada. Com alguma apreensão, confesso. Recordo os avisos, omnipresentes, para não penetrar nas ruínas de guerra. Quem sabe o que ainda ali haverá? A velha lareira ainda cá está. De pé. Encosto-me a ela e pergunto: o que terá sido feito deles? Como terão morrido? O avô que me ensinou a pescar, a avó que me deslumbrava com as antepassadas bruxas? Terá sido rápido?
Encosto-me à lareira e procuro dentro de mim. Não sinto nada. Não voltarei.
domingo, 10 de junho de 2007
A verdadeira História da Carochinha
Uma certa manhã, que é como quem diz, um certo après-midi, a Carochinha acordou com uma forte dor de cabeça e a boca a saber a papel de música, fruto de mais um dia, isto é, uma noite de labuta.
De mau humor, que isto não é vida!, deteve-se a contar as suas poupanças para se reformar daquelas andanças. Mas as economias eram escassas, que as coisas estão duras mesmo para os trabalhadores mais dedicados.
Mas a Carochinha era uma rapariga industriosa! Afinal, nem toda a gente é capaz de largar o país, a casa, a família, deixar tudo para trás e vir à aventura, em busca da sorte e da fortuna! A Carochinha era uma rapariga de iniciativa e sabia-o.
E depois, tinha aquele corpito que Deus lhe deu, e a carinha laroca, que bem lhe tinham valido para se safar na vida. Enfim, ao menos não andava na rua como umas e outras que conhecia! No bar os clientes eram gente elegante e endinheirada, ofereciam prendas e pagavam copos. Não é que não fossem uns porcos, lá nisso são todos iguais, os homens não podem ver um rabo de saia! Mas ganhava-se a sério, massa da grande. E não se apanhavam tareias!
Mas pronto!, ainda assim! O que é de mais é de mais, e depois, a Carochinha sabia que não caminhava para nova. Ainda era bonita, ainda era desejável, mas os anos não param e em breve deixaria de o ser.
Neste estado de espírito, tomou uma decisão: estava na hora de procurar marido. Requeria-se que fosse bem abastado, bem apessoado e bem apetrechado, que a Carochinha queria reformar-se mas não tanto.
Sentou-se à secretária, lápis em punho, e dedicou-se à difícil tarefa de alinhavar duas palavras inteligíveis por terceiros. Depois de muito suar e desesperar, produziu a seguinte obra-prima, da qual muito se orgulhou:
“Mulher jovem, bonita e com posses procura cavalheiro bem na vida para relação séria e futuro compromisso.”
Feliz, consigo própria e com uma tarefa bem realizada, a Carochinha mirou-se no espelho e perguntou-se:
- Quem quer casar com a Carochinha, que é airosa e formosinha?
E preparou-se para seleccionar pretendentes.
Nos dias seguintes a Carochinha não teve mãos a medir. Os pretendentes afluíram e a todos ela entrevistou. Até tirou a semana de férias!
Mas os rapazes foram uma desilusão. Uns eram jeitosos mas não tinham fortuna, outros tinham dinheiro mas eram gordos, uns eram bem falantes mas tinham voz de cana rachada, outros tinham uma voz de cantor de ópera mas só diziam ordinarices… enfim, uma desgraça! A todos a Carochinha rejeitava, em todos descobria defeitos.
Já a Carochinha desesperava, prestes a desistir, convencida a permanecer solteira para todo o sempre, quando lhe apareceu o João Ratão. Foi amor à primeira vista! A Carochinha ficou deslumbrada.
O João Ratão era um pintas ali do bairro, bonito como ele só, com elegância natural e charme para dar e vender. E muito, muito bem-falante! Fazia profissão de seduzir senhoras solitárias, que lhe pagavam a companhia e outros préstimos. Era um bocado fala-barato, há que confessar em abono da verdade, e um charlatão de primeira, mas era encantador e um bon-vivant. E a Carochinha apaixonou-se irremediavelmente.
Marcaram o casamento num prazo recorde. A Carochinha, convencida de que tinha arranjado herdeiro rico – o João Ratão disse-lhe que era filho de latifundiários ali da Lezíria do Tejo - nem acreditava na sua sorte. E o João Ratão, convencido de que casava com uma esposa abastada, para além de bonita, preparava-se para se dedicar aos seus verdadeiros interesses na vida: mulheres, toiros e vinho.
O resultado era óbvio: escassos três meses após o casamento já os esposos se tinham desenganado. E a paixão assolapada, tão rápida a despontar, foi igualmente rápida a converter-se em ódio assolapado.
Porque o João Ratão, frustrado com a escassez das economias da Carochinha, não parava em casa e, quando aparecia, era para confiscar os ganhos da esposa e para lhe arriar um sopapo por outro.
E a Carochinha, os sonhos de grandeza desfeitos, não só não se reformara como ainda sustentava o João Ratão.
No dia em que a Carochinha deu entrada no Hospital, estadia patrocinada pelo João Ratão, uma queda das escadas segundo a versão oficial, tomou a sua segunda grande decisão: estava na hora de se livrar do marido!
O João morreu na noite em que os esposos comemoravam cinco meses de casados – uma congestão no banho, segundo a versão oficial. Nem queiram saber a versão real!
domingo, 3 de junho de 2007
Soube assim que te vi
Segui-te. Desci na paragem, logo atrás de ti. E vi-te andar, como quem não tem pressa, atravessar o jardim e entrar naquela porta. A tua porta.
Nessa noite sonhei. Vi o teu perfil, o teu pescoço alto, elegante e levemente inclinado pelos balanços do autocarro. Esse teu pescoço, tão bem delineado, feito para ser acariciado. Sabes que eu gosto de pescoços. Gosto de lhes tocar, de os acariciar, de sentir a vida a palpitar neles. E o teu é tão esbelto, tão suave....
Soube que não teria descanso, que tinha de te voltar a ver, que tinhas de ser minha. E esperei-te, noite após noite, naquela paragem. Noite após noite apanhei o teu autocarro, sentei-me atrás de ti, imaginando esse teu delicado pescoço nas minhas mãos, torneando-o, afagando-o, pressionando-o. Noite após noite atravessei o jardim, na tua sombra, amando-te em silêncio. E fui feliz porque tu, sempre alheada das realidades, nunca me viste, nunca reparaste. Fomos felizes, tu e eu.
Mas tu, tu tinhas de estragar tudo. Não te bastava seres amada, eu não te chegava. Tiveste de arranjar esse tipo. Esse tipo nojento, que te acariciou e te beijou, te conspurcou e te profanou. No nosso jardim! A mão dele, pousada no teu pescoço!
O pensamento é insuportável! Não o podia permitir! Nunca mais, nunca mais ninguém tocará nesse teu pescoço. É meu, não permito que ninguém lhe toque. Finalmente posso senti-lo, posso tocar-lhe, rodeá-lo com os meus dedos. Sinto a vida sob os dedos, ceder ante a pressão. Sinto a vida a palpitar, mais e mais devagar, sinto-te a abandonares-te a mim. E vês-me, finalmente vês-me. Olhas-me, finalmente, olhos nos olhos. Sabes que eu existo e tens medo. Serei a última coisa que vês. E sabes, eu sempre soube. Assim que te vi, soube que ias ser minha.
terça-feira, 29 de maio de 2007
Eu tenho uma namorada
Muito linda e engraçada,
O seu nome é Carolina
E é minha namorada.
Ela anda de ganchinhos,
E de roupa cor de rosa,
Usa saia e sapatinhos
É bonita e vaidosa.
Eu sou sempre desgrenhado,
A calça com joelheira
O sapato maltratado
Pela muita brincadeira.
Ela gosta de bonecas,
De casinhas e da escola,
Eu gosto de bicicletas
De correr e jogar bola.
Muitas vezes temos brigas
Depois fazemos as pazes,
São estranhas as raparigas,
Tão diferentes dos rapazes.
Mas eu gosto muito dela
E ela gosta de mim
Namoramos à janela,
E já casámos no jardim.
Eu tenho uma namorada,
Que se chama Carolina,
É bem gira e engraçada,
Apesar de ser menina.
quinta-feira, 24 de maio de 2007
A Branca de Neve is out there
“A verdadeira História da Branca de Neve”
(ok, foi só a pedido de uma família... ‘tá bem, pronto, foi a pedido
de uma só pessoa, mas foi uma pessoa importante, ‘tá bem?
Foi a pedido do Luís do Atirei o Pau ao Gato).
Um dia o tiro saiu-lhe pela culatra e a Branca de Neve acordou muito maldisposta, numa cama desconhecida e com uma bata de bradar aos céus. Pelo amor de Deus!, um trapo daqueles nem para os pobres! Quem desenharia estas coisas, não haveria um estilista que fizesse algo mais apresentável para aquela gente? É o que dá, frequentar hospitais públicos! Povinho, credo!
O pai, um senhor algo volúvel e inconstante, visitou-a no Hospital. Chato como a potassa, não desamparava a loja! Foram vários os teores da sua conversa, a saber: que sofria muito, que não compreendia a filha, que lhe dera tudo, como pudera ela fazer-lhe tal coisa logo a ele, pai extremoso, que a culpa era dele, que se ia separar da madrasta, que a filha estava de castigo ad eternum, que não podia ver mais os Sete Anões, que...
Enfadada, a Branca de Neve distraiu-se com um jovem médico que por ali andava e que, há que dizê-lo com frontalidade, era um gato.
No dia em que o pai a levou do Hospital é que foram elas: cortou-lhe a mesada, controlou-lhe as saídas e os amigos e, pior de tudo, destacou-se a si próprio como cão de guarda e passou a andar sempre de roda dela, a representar o papel do pai preocupado e solícito. Uma seca! E já nem sequer tinha a madrasta para se entreter com umas sacanices à maneira...
Quando o médico lhe telefonou para a levar a jantar, a Branca de Neve estava à beira de uma ataque de nervos. Estava capaz de sair com o Frankenstein, desde que saísse!
Mas depressa viu as vantagens da situação. O jovem médico, idealista e romântico, metia a Branca de Neve num pedestal. Deslumbrado com a sua beleza, mimava-a de todas as formas e feitios. Levava-a a todo o lado, a restaurantes de luxo, a teatros e à Ópera (lugares que a Branca de Neve nunca frequentara, apesar da fama do pai de homem culto). Enviava-lhe rosas, tão brancas como o seu nome, oferecia-lhe jóias e vestidos, levava-a a passear pelo país e pelo estrangeiro... e, principalmente e acima de tudo, pagava tudo isto com um belíssimo cartão de crédito Gold. A Branca de Neve apaixonou-se!
E nem sequer lhe era muito difícil representar o papel da musa do jovem médico: bastava-lhe ser decorativa e o mais consumista possível. E, claro, manter-se longe das drogas, o que se revelou nem ser demasiado difícil. Andava tão distraída, com tanta coisa nova para ver e comprar... E depois, sem stress, se alguma vez não aguentasse a pressão, haveria sempre um comprimidinho milagroso para ajudar. De resto, o jovem médico tinha receitas por todo o lado e a Branca de Neve, claro, era perita em falsificar assinaturas.
De vez em quando assaltavam-na umas saudades dos dias aventurosos com os Sete Anões, em que partiam estádios, assaltavam bombas de gasolina e snifavam coca. Mas pronto, não se pode ter tudo, e a vida com o jovem médico até nem era nada má. Tudo bem pesado, a Branca de Neve lá se dispôs a dar o nó.
Quem ficou por demais orgulhoso foi o pai da Branca de Neve. Quem o ouvir ficará a saber como ele, pai exemplar, criou uma filha sozinho e a tornou num ser humano extraordinário, noiva linda e colunável de um doutor de excepção. E claro, se alguém tiver a falta de gosto de lhe recordar os conturbados meses de juventude, ele dirá só, à laia de confidência, que nada como o apoio da família (leia-se pai dedicado), para ultrapassar os problemas da adolescência.
segunda-feira, 21 de maio de 2007
Foi por te amar...
Tens uns cabelos tão lindos, tão lindos... Não, não tenhas medo, estava só a sentir o teu cabelo, é tão macio e tão loiro! Não precisas de ter medo, estamos quase a chegar, já vais ver a tua mamã... É bonita, a tua mamã, é uma senhora bonita, não é? Assim como tu. Isso, estás-te a portar muito bem. Estamos quase a chegar. Paramos aqui um bocadinho, está bem? Vamos descansar só um bocadinho. Olha, deita-te aqui, bem junto a mim. Encosta-te aqui, para eu te sentir.
Tens uns cabelos tão lindos... Era capaz de mexer nos teus cabelos para sempre. Cheiram tão bem, os teus cabelos! Os cabelos dos crescidos não cheiram tão bem, sabes pequenina? Não, não chores, pára! Não grites, não é preciso. Não te quero fazer mal, gosto muito de ti. És tão linda, tão macia... nunca te poderia fazer mal... Pára, estás a fazer barulho. Vá, pequenina, não te quero fazer mal, eu só faço coisas boas, estás a ver? Não são boas, as festinhas? Não chores, pequenina, olha, come o chupa e eu faço festinhas, assim, assim... eu só faço coisas boas, sabes? Porque é que choras, não gostas do que eu te faço? Não é bom?
A culpa é tua, pequenina, porque és demasiado bonita. Ninguém devia ser tão bonito. Como é que eu vou resistir, com uma coisinha como tu sempre a correr por ali, hã? A culpa é tua, e daquela tua mamã, que te deixa à solta. Eu sou melhor que a tua mamã, amo-te mais que a tua mamã. Eu não te deixo sozinha. Amo-te. Vá, pára de chorar, ainda me fazes zangar. Eu não me quero zangar, mas tu fazes-me zangar. A culpa é tua, sabes? És tão bonita. Se não fosses tão bonita... Vá lá, cala-te, CALA-TE... CALA-TE!
Eh, pequenina. Pequenina! Oh, merda, olha o que fizeste. O teu lindo cabelo, tão loiro e macio! Todo sujo e manchado de sangue. Vê o que fizeste! Acorda pequenina...
Porque é que não te calaste? Acorda, por favor. Não me deixes sozinho outra vez...
quarta-feira, 16 de maio de 2007
A verdadeira história da Branca de Neve
Era uma criança encantadora... quanto lhe faziam as vontades! Se alguém a contrariava, aí é que eram elas! Era dada a birras, ataques de mau-humor, a má educação...
A Branca de Neve era muito, muito bonita e muito, muito provocante. Desde cedo aprendeu a fazer uso da sedução em detrimento da argumentação. E era muito vaidosa! Passava horas ao espelho, a ensaiar olhares, poses, sorrisos... Adorava perguntar à sua imagem no espelho:
“Espelho meu, espelho meu, há mulher mais bonita do que eu?”
Como poderão deduzir, a Branca de Neve era bastante mimada. Era daquelas crianças filhas de pais separados, que sempre se habituou a manipular os adultos com complexos de culpa, que a enchiam de presentes para compensar a falta tempo e de atenção.
O pai da Branca de Neve era muito conhecido. Era mesmo uma figura importante na época, com programas de televisão, crónicas nos jornais, um ou outro livro editado, enfim,... era considerado uma figura de destaque do mundo da cultura!
E tinha imenso mérito. Conseguia fazer tudo isto, e convencer milhões de fãs dos vários quadrantes, sem nunca ter lido um livro, sem ter entrado numa sala de teatro, sem nunca frequentar um museu... O pai da Branca de Neve era o maior e melhor bluff da época, e, à semelhança da sua filha, fazia da sedução uma forma de vida... e fazia-o bem.
Um dia, o pai da Branca de Neve arranjou uma namorada. Não é que ele não aranjasse namoradas de quando em vez, era exímio nisso, mas elas não resistiam mais que uns meses... a Branca de Neve encarregava-se disso.
Mas desta vez ele estava apaixonado, e ela também. Estavam resolvidos a fazer com que a coisa resultasse, até marcaram casamento e tudo!
E por isso, a namorada encheu-se de coragem e decidiu-se a enfrentar a fera... que é como quem diz, a Branca de Neve (que entretanto era uma adolescente manipuladora e mal-homurada, que só queria sair à noite e chumbava anos consecutivos)...
A namorada era uma rapariga inteligente e determinada. Ou seja, tentou todas as técnicas possíveis: tentou ser amiga da enteada, tentou impor regras e limites, tentou castigar, tentou ignorar as má-criações, tentou oferecer-lhe presentes, tentou a abordagem psicológica...
A Branca de Neve também punha em prática várias estratégias com a madrasta... em frente ao pai, era encantadora com ela. Nas costas do pai, fazia-lhe a vida negra... e na sua ausência, envenenava o pai com mentiras acerca da perfídia da madrasta, que a mal-tratava e que tinha inveja da sua beleza e juventude...
O pai, apesar da sua fama de homem culto e interessante, não primava pela inteligência. Deixava-se levar pelas manobras da Branca de Neve e cada vez mais tendia a culpar a namorada pelos insucessos escolares e pela rebeldia da filha... Afinal, a garota estava traumatizada pelo divórcio dos progenitores e pelo novo casamento do pai!
No dia em que lhe telefonaram do Hospital a comunicar que a filha estava em coma, com uma overdose, o pai ficou em estado de choque.
A polícia informou-o que a ambulância tinha sido chamada por uns rapazes de má fama, ao que parece amigos da Branca de Neve. Segundo a polícia, a filha pertencia a um bando de marginais, claque de um grande clube de futebol e conhecido em todas as esquadras dos arredores como os ‘Sete Anões’ (não que fossem pequenos, a alcunha referia-se mesmo à envergadura dos seus escassos neurónios!).
O pai ia tendo uma apoplexia! Separou-se da madrasta na hora, porque a menina, coitadinha, estava mesmo muito traumatizada!
Como vaso ruim não quebra, a Branca de Neve safou-se da overdose. E de caminho, engatou o jovem médico que tratou dela, um romântico incurável seduzido pelo ar ingénuo da Branca de Neve e por um sentido de missão: tirar aquela jovem das más vidas e más companhias.
sexta-feira, 11 de maio de 2007
Os Dentes
Já não sou um bebezola,
Já tenho dentes dos novos,
Já tenho de ir à escola.
Hoje caiu-me mais um dente,
Que já estava a abanar,
Estou mesmo desdentado,
É a idade a aumentar.
Vou pôr o dente na cama,
Debaixo da almofada,
Vou esperar pela moeda,
Que me deixará a Fada.
A Fada dos Dentes vem,
À noite na escuridão,
Dá dinheiro pelo dente,
Já me deu um dinheirão.
Gosto muito de perder,
Os dentes de pequenito,
Estou mesmo mais crescido,
domingo, 29 de abril de 2007
A verdadeira história do Lobo Mau
Assim, e após uma juventude de predador relutante, o lobo Crispim retirou-se dessas andanças e converteu-se ao vegetarianismo. Dedicou-se à sua horta e entristecia-o ver como os seus camaradas lobos continuavam caçadores natos, não se importando rigorosamente nada com os sentimentos das suas presas. O Crispim bem tentou converter a restante matilha mas não teve sorte nenhuma. Para sermos totalmente honestos, devemos confessar que publicou, até, um livro de receitas vegetarianas [1], mas com muito pouco sucesso na comunidade dos lobos.
Como é de calcular, esta atitude na vida tinha afastado muita gente do Crispim. É que os lobos, como as restantes pessoas, não gostam demasiado daqueles que decidem ser diferentes. Por isso, era muito habitual o Crispim andar sozinho e ser gozado pela miudagem da vizinhança.
De entre a malta lá do bairro havia três jovens delinquentes particularmente maus para o Crispim: os três porquinhos. Sempre que encontravam o Crispim na rua, os três porquinhos rodeavam-no e começavam a cantar:
- Quem tem medo do Lobo mau, lobo mau, lobo mau...
E pregavam rasteiras ao Crispim, atiravam-lhe porcarias, cuspiam-lhe, enfim, faziam todas as maldades que queriam. E o Crispim tentava não se zangar.
Os três porquinhos eram três jovens de má fama lá no bairro, sempre à procura de proeminência. E, para mal dos pecados dos seus vizinhos, tinham conseguido alguma fama nos media uns anos atrás, devido à boys band “Chiqueiro”, da qual eram os vocalistas. Quando a época das boys bands passou, os três porquinhos aumentaram a sua notoriedade ao participarem num reality show em que os famosos expunham o seu pior em directo e ao vivo para deleite dos seus concidadãos. Mas o público andava já um pouco saturado dos reality shows e, além disso, os porquinhos depressa foram expulsos pelos colegas devido ao mau feitio e à badalhoqueira.
Assim, não é de admirar que os nossos três porquinhos andassem um pouco enervados com a falta de destaque nas revistas do jet set.
Foi devido a este momento particularmente complicado da vida dos três porquinhos que aconteceu o incidente que a seguir iremos relatar: os porquinhos estavam ociosos na esquina, à espera de qualquer coisa que os distraísse. E o Crispim teve o azar de passar ali pela rua naquele momento. Em suma, estava no sítio errado na altura errada! Quando viram passar o Crispim, os porquinhos pensaram:
- Ora cá está o tonto do lobo! Agora é que nos vamos divertir!
E assim foi: os porquinhos divertiram-se! Encurralaram o Crispim num beco escuro, deram-lhe uma sova, e acabaram arrastando o desgraçado lobo para casa, onde lhe escaldaram o rabo com água a ferver.
Quando o pobre Crispim conseguiu sair de casa, três dias depois, foi apresentar queixa às autoridades. Os porquinhos tinham ultrapassado todos os limites do tolerável, até mesmo para o Crispim, que não gostava de se chatear. Quando se soube lá pelo bairro da iniciativa do Crispim, houve mais gente que se armou de coragem e denunciou os três porquinhos por maus-tratos, abuso de poder, violência, distúrbios, et coetera.
As autoridades investigaram o caso. Mas, não se sabe exactamente como, houve fugas de informação e depressa o caso passou para a comunicação social, onde foi explorado até à exaustão, não fossem os três porquinhos figuras públicas da época. Elaboraram-se debates, entrevistaram-se os vizinhos, as celebridades foram chamadas a dar opinião... enfim, foi um acontecimento social!
E, de acordo com a mentalidade então reinante, exerceram-se pressões junto a quem de direito e demitiram-se alguns membros demasiados atrevidos das autoridades. Concluindo, a investigação foi discretamente encerrada por falta de provas.
Claro que, se a nível oficial as coisas decorreram com esta simplicidade, já na esfera das influências privadas as coisas tiveram outros desenvolvimentos. Alguns jornalistas foram devidamente recompensados pela sua pronta intervenção na disseminação de boatos difamadores do carácter do Crispim. E algumas figuras obscuras na época aproveitaram a ocasião para se lançarem na ribalta, prestando falsos testemunhos acerca da ferocidade daquele lobo hediondo que, embora tentando vestir a pele do cordeiro, não enganava ninguém. O caso mais flagrante, cuja fama perdura até aos nossos dias, é o do Capuchinho Vermelho, que se sagrou herói salvando a sua imaginária avozinha das garras do carniceiro Crispim.
E foi assim que os três porquinhos conquistaram a imortalidade, constando nas histórias que passam de geração em geração como os inocentes que ludibriaram o lobo mau e lhe deram o devido castigo, maldoso quantum satis mas principalmente ridículo, um escaldão no rabo.
E foi assim que o Crispim, lobo vegetariano e de tendências pacifistas, espancado e escaldado por delinquentes juvenis, ficou para a posteridade como o terrível Lobo Mau, personagem central de inúmeras histórias infantis e, irremediavelmente, dos pesadelos das nossas crianças.
[1] “Vegetais para Carnívoros” de Crispim Lupus, da Editorial Fictícia.
terça-feira, 17 de abril de 2007
A Casa do meu Avô
Que mora lá na aldeia,
Vive lá sempre sozinho,
Com um cão de cara feia.
Da casa vê-se o comboio,
Que passa a serpentear,
Vê-se os montes e as vinhas,
E a mãe diz que há bom ar.
Gosto muito daquele cão,
É feio mas é um querido,
Corre e pula e desafia,
Quer sempre brincar comigo.
Posso andar sempre na rua,
Tenho muita liberdade,
Não tenho de estar em casa,
Como tenho na cidade.
Ando à solta pelos campos,
Já nem da cidade sou.
Gosto muito de lá ir,