domingo, 13 de abril de 2008

A Capela

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.....No cimo da aldeia, sobranceira às casas e isolada num pequeno alto, a velha capela encontrava-se vazia. Também ela mantinha integralmente a arquitectura antiga, mas não a função. Ali não se praticava qualquer tipo de religião instituída, católica ou outra. Quem quisesse, claro, era livre de ali comungar com Deus, em qualquer das suas formas. A atmosfera adequava-se a isso, com a sua luz colorida filtrada por um velho vitral e as sombras bruxuleantes provenientes das velas existentes. E o velho altar, de talha dourada, com a estátua de Santo António embalando o menino, mantinha-se no seu local de sempre. Não era um altar muito rico, nem a estátua possuía qualquer qualidade artística particular. Mas eram genuínos, sempre ali tinham pertencido, e ali continuariam para a posteridade. Tal como o altar dos ex-votos, ali deixados durante eras por peregrinos e penitentes das serras em redor, porque, constava, ali se haviam realizado curas milagrosas em tempos recuados. Tão recuados, de facto, que a lenda era vaga, as versões aceites nas vilas serranas discordando nos pormenores. Numas versões o curandeiro milagroso fora uma jovem freira fugida, noutras um velho e sábio padre ou um monge de tonsura e hábito franciscano. A tosca estátua de madeira pintada, representando o curandeiro, não desfazia as dúvidas. De qualquer forma a personagem era religiosa, de hábito comprido e, e nisto concordavam todas as versões, cega. A lenda desse religioso cego e milagroso ainda era conhecida nas vilas em redor, que nas aldeias já não havia ninguém, e existiam duas ou três monografias académicas sobre a lenda. O Casal da Giesteira recuperara a sua colecção de ex-votos e mantinha-a em exposição numa das naves laterais, onde sempre tinham estado. E ainda recebia, esporadicamente, um ou outro velhinho dos arredores em peregrinação ou paga de promessa, que ali deixava uma fotografia ou outra lembrança, a juntar às existentes.
.....O Sérgio sentiu-se imbuído por uma solenidade respeitosa ao penetrar naquele espaço. É curioso, pensou, como uma capela, por pequena que seja, continua a inspirar este sentimento mesmo a quem seja ateu de pai e mãe, como ele, e completamente alheio a qualquer sentimento religioso. É algo nas proporções, na luz e nos cheiros, matutou o Sérgio enquanto percorria a capela.
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