quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Ruanda

Chegaram. Ouço-os lá fora, a turba excitada e barulhenta. Aproximam-se, estão a chegar. A qualquer momento metem a porta dentro. Pronto, já está. Estão aqui. São tantos! Tantos e tão grandes! Suados, ameaçadores, catana em punho. Parecem demónios sanguinários, embriagados pelo sangue e pelo fogo. Gritam-me e empurram-me, confundem-me no meu terror. Tenho a certeza que chegou a hora, a minha hora. Pela afronta de não ter acorrido, não ter respondido à chamada geral. Por não ter pegado nas armas, não ter acorrido à matança geral.

Mas não. Não me cortam nem me trespassam. Arrastam-me com eles, entre cânticos e urros. Sou um deles, sou um Hutu, por isso não morro. Não já, pelo menos. Não enquanto gritar como eles, entrar na loucura colectiva.

Estou entre eles, no meio da turba. Sou arrastado pela multidão. Põe-me algo na mão, uma catana talvez. Não, uma enxada, a lâmina escura e pegajosa, de sangue naturalmente.

Percorremos a rua e o ritual repete-se. Entramos nas casas que tão bem conheço, um bando furioso e ululante, uma tribo aterrorizante e barulhenta. Vejo os vizinhos de toda uma vida, o terror profundo espelhado nos olhos, de arma em punho e a engrossar as fileiras. Recrutas à força.

Conheço esta rua como as palmas das mãos. Conheço cada um dos seus habitantes desde tempos imemoriais. E é isso que mais me horroriza. Porque sei, sei perfeitamente que na próxima casa o ritual será diferente. Porque ali não moram Hutus. Moram Tutsi. Conheço-os desde sempre, jogamos à bola desde miúdos.

A cena repete-se: a porta arrombada, o terror nos olhares. Os gritos e urros e cânticos de guerra. Arrastam todos para a frente da casa. São tantos! Há o velho e os dois irmãos, homens da minha idade, miúdos comigo. Há as crianças, três pequeninos a chorar de terror. E há a mulher, a pança inchada de boa parideira, mais um Tutsi para povoar este mundo.

Empurram-me para a frente, a mim e aos outros, meus vizinhos recém recrutados. Temos de mostrar de que massa somos. Da massa dos Hutus, verdadeiros guerreiros, ou de sangue diluído e aguado, dos fracos e cobardes.

A família vê-nos à frente da turba. O alívio transparece nos olhares assustados. Afinal somos vizinhos, amigos de infância e gente de bem. A esperança renasce nos rostos transidos.

Atrás de mim o barulho é terrível. Urram excitados e incitam-nos à acção. Somos empurrados de novo para a ribalta. Sabemos, não há fuga possível. São eles ou nós. Não há salvação. Não para eles, de qualquer maneira. São Tutsi, raça inferior, raça danada, não são como nós. Há duas opções: morrem eles ou morremos todos, nós com eles.

Evito o olhar do meu vizinho, do meu companheiro do jogo da bola. Não quero olhá-lo. Se o olho perco a coragem. Lembro-me como era em pequeno, um minúsculo filho da puta, com a mania que mandava em nós. Era um pequeno tirano, sadicozinho com os mais novos. Um filho da puta como eles todos, os Tutsi todos estuporados. Não quero olhar para a mulher prenha, para os miúdos em pânico. Olho para ele, para o meu companheiro, e invoco todas as ofensas que me fez em pequeno. Inspiro fundo e ergo a enxada. Sinto-me outro que não eu próprio, olho tudo como se estivesse de fora. Vejo a enxada descer sobre ele, o meu companheiro dos velhos tempos. Racha-lhe o crânio de alto a baixo.

É a euforia. A multidão canta, embriagada. Pelo canto do olho vejo-os cair, a mulher prenha e os miúdos medrosos, o velho cobarde encolhido a um canto.

A multidão exulta, e eu exulto com eles. Sinto-me embriagado pelo sangue e pelo medo. Sou levado em ombros com mais dois ou três dos recém baptizados. Agora sim, somos homens de facto, Hutus a sério. Agora sim, podem orgulhar-se de nós.

Somos depostos e continuamos em frente. Os cânticos ecoam na minha cabeça. À frente há mais casas, há Tutsi sem fim. À frente há muita limpeza para fazer. Continuo com os meus irmão, eufórico, embriagado. Afinal, são só uns Tutsi.