sábado, 21 de julho de 2007

Madame Rose

A Maria da Rosa Silva, Rosinha para a família, Madame Rose em negócios, nasceu num quartinho escuro num rés-do-chão deteriorado, no nº 6 da Travessa dos Inglesinhos, corria o ano da graça de 1945.
Em pequena, filha de uma menina remediada de aldeia e de um charlatão Lisboeta, até prometeu. A mãe cedo se empenhou na sua educação, ensinando-lhe com mestria a arte do passajado, do bordado e do ponto de cruz. Imaginava uma carreira promissora como modista de bairro ou, em alternativa, dotava-a dos atributos indispensáveis a qualquer menina casadoira que se prezasse.
Já o pai, centrava os seus esforços a educação do Joaquim José, o filho primogénito. Colocou grandes esperanças na sua educação e iniciou o seu treino nas finas artes da intrujice. Mas o rapaz saiu-lhe uma decepção. Coração mole por natureza, pouco persistente nas tarefas e com tendência para facilmente se traumatizar, não levava jeito no ramo.
O pai culpava a mãe. Dizia ser dela a má influência, que amolecia o rapaz. A mãe calava-se, já que era de seu feitio e educação a passividade perante os homens em particular e a vida em geral.
Rosinha, de nome artístico Rose, nunca interessou ao pai. Tinha o defeito supremo, jamais ultrapassável, de ter nascido mulher. Por tal, o pai nunca chegou a descobrir ser esta a filha por que o seu coração ansiava, alma gémea, capaz de o seguir e com ele aprender as subtilezas da profissão.
Assim, mercê do preconceito do pai, a Rosinha teve de traçar sozinha os seus caminhos na vida.

O Joaquim José, Quim Zé para os amigos, bem feitas as contas e passado o primeiro rancor de primogénito destronado do papel de Ai Jesus da família, mostrou-se um irmão dedicado. Assim que a Rosinha conseguiu alinhavar os primeiros passos, o Quim Zé fez sua a tarefa de lhe mostrar o mundo. Exibia a irmã como quem mostra o brinquedo de estimação.
A relação entre os irmãos teve alguns incentivos, a saber: a depressão apática da mãe, que a custo lá ia assegurando existência material dos filhos (não passavam fome nem andavam nus, há que dizê-lo com frontalidade), e o desinteresse do pai que, entre negócios escusos e uma amante fadista, não dispunha de tempo para entreter os petizes.
Por isso o Quim Zé, que era de se enternecer com as dores alheias, tomou a irmã a seu cargo. E, contra todas as expectativas, deu por si a gostar mesmo dela.
Já a Rosinha era de outra água. De pequenina apenas gostou de si própria e da Gertrudes. Mas, calculista de nascença, percebeu que o irmão era o seu fiel guardião e não o maltratou em demasia. Pelo contrário, habituou-se a usar o Quim Zé como seguro contra todos os riscos, inerentes às confusões a que era propensa.
E assim se criou um ritual, que se perpetuou até ao ‘acidente’: a Rosinha metia-se em trabalhos, exercendo e treinando, para contingências futuras, a sua maldade inata, e o Quim Zé tirava-a dos sarilhos, não raro à custa de algumas amolgadelas na carroçaria.

Nestes entremeios, enquanto os miúdos cresciam, o pai não ficava inactivo. A modesta quantia que a mãe trouxera de dote foi diligentemente investida em projectos de futuro. A saber: uma casa para a amante fadista e vários negócios pouco claros. Findos este trâmites, e esgotados os fundos de investimento, uma acção se impunha: a mudança.
Quando o Quim Zé contava 8 anos e a Rosinha 4, o pai saiu um dia para comprar o clássico maço de cigarros e não mais voltou.
A mãe, Florentina de seu nome, sacudida na sua letargia, levou a mal esta alteração do seu ritmo de desgostos. Depois de chorar três dias a fio encontrou enfim com que se alegrar: estava livre da presença opressiva do amantíssimo esposo.
Embora não de iniciativa própria, que a tanto não chegava o desembaraço da senhora, antes instigada pela maledicência e intriguice da vizinhagem, Florentina agiu pela primeira vez na sua vida. Tomou-se de brios, vestiu o vestido de ir ver a Deus, e foi à polícia dar parte do desbarato da sua herança.
Graças à conhecida celeridade das investigações policiais e consequentes processos judiciais, o pai continuou a viver no bairro com a amante fadista e com ela produziu mais um rebento, mas estas são contas de outro rosário, do qual daremos conta mais à frente.

E a Rosinha? A Rosinha ia crescendo e florescendo, mais espinhos que rosas. Para além do irmão Quim Zé, outra grande influência moldou a infância da Rosinha Silva: a Gertrudes do lado.
A Gertrudes era uma adolesceste vistosa e atrevida que vivia pendurada à janela de casa, no rés-do-chão do nº 8, namoriscando todos os rapazes e senhores que lhe passavam ao alcance da vista. Com o passar dos anos assumiu a vocação que Deus lhe deu e profissionalizou-se, sendo o consolo e a reserva de sanidade de muito pai de família no Bairro Alto e arredores. Como a própria Gertrudes gostava de afirmar, se já tivesse o negócio montado na altura, certamente o Miguel Silva não teria arranjado uma amante fadista nem teria abandonado o lar.
A Gertrudes era desbocada e ordinária, lá isso era, mas tinha um coração de ouro e uma alegria crónica e contagiosa, que transbordava para a casa ao lado. Era a única pessoa que conseguia atravessar as brumas da depressão da mãe Florentina e trazer algum ânimo ao nº 6 da Travessa dos Inglesinhos. Por ela, e só por ela, a Florentina suspendeu a sua moralidade retrógrada de menina de aldeia, dedicando-lhe uma amizade profunda e sem reservas. E por ela se apaixonou irremediavelmente a pequena Rosinha, tomando a Gertrudes como modelo de vida e dela bebendo avidamente cada palavra. Copiava-lhe os meneios e maneirismos, os ditos e piropos. Se alguém se interessasse e lhe perguntasse, a Rosinha diria que, quando crescesse, queria ser puta de bairro como a Gertrudes do lado.
...........
(Continua)

sexta-feira, 6 de julho de 2007

O Dia D

Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Hoje saí. Não fui muito longe, fiquei-me aqui pela Praceta, no banco em frente da porta. Não é uma grande Praceta, nem um grande jardim, assim no meio dos prédios. Mas tem um banco e alguns canteiros, uma árvore e uns raios de sol. E ao sol sinto-me quase quente, quase reconfortado.

Hoje saí e sentei-me no banco. Não muito tempo, que já não consigo. Canso-me demais. Mas queria despedir-me. Do sol, e do dia, e do ar livre, mesmo com cheiro a escape. Mas é melhor do que nada, é mais do que eu tenho tido. E posso sempre fechar os olhos, sob os raios de sol, e pensar que estou na praia ou num bosque frondoso.

Hoje é um dia bom. Na maior parte dos dias não me levanto, estou fraco demais. Dormito e medito, vegeto apenas. Mas hoje não. Hoje é um dia bom. Ainda existem, cada vez menos mas ainda existem.

Não quero viver assim. Não quero morrer aos poucos, devagar, sem acordo de mim. Não quero impor-me essa morte nem impô-la aos outros. Não me quero impor a ninguém, muito menos àqueles que amo, corroendo o amor com a degradação de um fim doloroso, indigno. Não quero ser um velho moribundo e sofredor, incapaz de tratar de si. Quero que me recordem assim, como estou hoje. Ou melhor, como era há um ano, há dois, antes de tudo isto, antes do princípio do fim.

Está decidido há muito. A decisão está tomada, está tudo a prontos. Sou precavido, sempre fui. Tenho tudo o que necessito. Tratei disso há mais de um ano, enquanto podia. Quando soube que era desta, que desta era de vez. Hoje é o dia. Vai ser pacífico. Vou morrer como quem dorme, num sonho infindo.

É esta noite. Quando todos dormirem, quando não houver movimento, será a hora. Posso esperar, é a vantagem da insónia. Posso esperar calmamente. Então, quando todos dormirem, tomo os comprimidos. A embalagem toda, por via das dúvidas. E depois, Ah, depois... depois instalo-me na minha velha poltrona, à janela, preparo um whisky e acendo um cigarro. As saudades que eu tenho de um whisky, Deus meu!, e de um cigarro!

Da minha velha poltrona vejo um pedaço de céu, negro e estrelado. Recosto-me e saboreio. E quando Ela chegar, hei-de dar-lhe as boas vindas.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Quando eu for grande


Ilustração do Tacci do Portugal, Caramba!

Eu cá quando for crescido
Quero ser o Pai Natal,
Não quero ver ninguém triste,
Não quero ver ninguém mal.

Quero dar prendas a todos,
Quero todos bem contentes,
Não quero ver ninguém triste,
Quero todos com presentes.

É a melhor profissão
Pai Natal é que eu vou ser
Vou viver no Pólo Norte
Onde o frio é a valer.

Ser Pai Natal é bem fixe,
E depois, para além de tudo,
Posso ter fato vermelho
Ser barbudo e barrigudo.

Posso entrar nas chaminés,
Deixar a prenda na meia
Posso voar no trenó
Não é uma boa ideia?

O Pai Natal é bem fixe,
Faz toda a gente feliz,
Ser um grande Pai Natal
É tudo o que eu sempre quis.