sábado, 31 de março de 2007

A Alma

Ilustração retirada de YACIN the FAUN
***
Eu tenho um grande mistério,
Que não posso compreender,
Dizem que eu tenho uma alma,
Que eu não consigo ver.

Eu cá nunca vi a alma,
E também nunca a cheirei,
Nunca lhe escutei a voz
E nem sequer lhe toquei.

Dizem que todos a temos
E que a alma é bem bonita,
Mas onde é que ela se esconde,
Essa alma tão esquisita?

Dizem que com a alma sinto
Amor, carinho, amizade,
Raiva, zanga e ciúme,
O medo, a dor e a saudade.

Dizem que com a alma voo,
Como um pássaro a planar,
Eu não vejo quaisquer asas,
Onde é que as vou procurar?

Dizem que com a alma crio,
Histórias e palhaçadas,
Desenhos e brincadeiras,
As coisas mais engraçadas.

Esta alma é muito estranha,
Bem difícil de entender,
O que vale é que me dizem
Percebo quando crescer.

quarta-feira, 28 de março de 2007

O jardim da minha infância

Foto da Ana, do Simples Sopros

No meu bairro existia um jardim, meu terreiro de jogos durante a infância. O Jardim não era nada por aí além. Não passava de um quarteirão, com canteiros e algumas árvores, um coreto e um laguito com patos, um escorrega e dois baloiços. E, claro, muitos bancos soalheiros onde as velhotas faziam tricô enquanto os maridos, igualmente velhotes, jogavam à bisca instalados nas velhas mesas pintadas de verde, já a descascar aqui e ali.
Apesar de modesto, nós adorávamos o nosso jardim. As árvores eram centenárias, com vastos troncos e folhagem densa. Uma em particular era muito convidativa, os seus ramos acomodavam-nos facilmente. Uns dias nave espacial, noutros barco de piratas, às vezes casa de bonecas ou covil das feras, a árvore pertencia-nos e a tudo se moldava.
No Inverno, quando a chuva enchia o chão de poças e a árvore se encontrava molhada e desconfortável, os ramos pingando frias gotas que se enfiavam pelas golas e nos arrepiavam como dedos gelados, assentávamos arraiais no velho coreto gasto pelos anos que, enfeitado com as cores da imaginação, atingia dimensões de castelo invencível, palácio de princesas ou reduto das bruxas.
Nas traseiras do jardim, no quarteirão que com ele marginava, existia um morro coberto de matos e lixo, no cimo do qual outrora se erguera um prédio que ruíra anos antes. Dele sobrava ainda uma parede, por ser comum a dois prédios, o que ruíra e outro que resistia, ainda incólume. E nessa parede, expostos ao olhar de quem passasse, viam-se ainda cores desbotadas, azulejos de casa de banho, testemunhos silenciosos de melhores tempos. Até uma sanita, lá no terceiro andar, enfrentando chuva e sol e vento cortante sem dar mostras de querer ceder, se expunha ao olhar do mundo.
Para nós, miúdos, o jardim prolongava-se para as traseiras, englobando o morro e as ruínas no nosso campo de brincadeiras. Ali éramos bravos exploradores trepando o Monte Evereste, arqueólogos investigando relíquias de civilizações passadas, índios preparando astutas emboscadas aos cowboys ou polícias em perseguição de um bando de perigosos assaltantes. Ali eles éramos reis e senhores de um mundo fértil e rico de aventuras.

A MINHA MÃE

Ilustração de Tacci (Portugal, Caramba!)


Debaixo da cama
Tenho um lobo mau
E no meu armário
Vive um animal.

Mas no quarto ao lado
Dorme a minha mãe
Que guarda o meu sono
Como mais ninguém.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Revisão Ortográfica

Sabendo nós que a língua portuguesa é uma língua viva e, logo, em constante evolução, não é de estranhar que, de tempos a tempos, seja necessária uma revisão ortográfica e fonética dos termos oficialmente considerados “correctos”.
Assim, venho deixar à vossa consideração algumas sugestões respeitantes à conjugação verbal que penso serem pertinentes na próxima revisão da língua portuguesa:
1. Proceder à correcção definitiva da 1ª pessoa do plural do presente do conjuntivo. Como toda a gente sabe, este tempo verbal é uma palavra esdrúxula (se não sabem o que isto é, vão ver ao dicionário!). Há para aí a mania de corrigir o póssamos, tênhamos ou fáçamos (claro que escrevemos sem acentos, porque isto dos acentos, também, só serve para atrapalhar!). De resto, no que respeita à ortografia, lanço um desafio de debate que se prende com a presença ou ausência de hífen (para quem isto é estrangeiro, eu simplifico: póssamos ou possa-mos, eis a questão! Há ainda alguns dissidentes que sugerem o poça-mos ou o póçamos, mas parecem-me menos consensuais).
2. Já no que respeita à 2ª pessoa do plural, de qualquer tempo que vos agrade, proponho a sua simples abolição. Assim como assim, já é “latinório”, de uso exclusivo em igrejas por padres adequadamente conservadores. Passo a explicar: substituímos simplesmente o desagradável “vós ides” pelo tão simpático e familiar “vocês vão”.
3. Adopção, como regra constante de todas as gramáticas abençoadas pelo ministério da educação, do pronome “a gente” (não confundir com agente, que é da polícia!) como sinónimo de “nós”. Teríamos “a gente vai” ou, ainda, “a gente vamos”, expressão tão querida do nosso povo português.
4. Outra: que mania esta de tirar o “s” ao “fostes”, ao “dissestes” ou ao “comestes”! Então se é vais, dizes, comes, por alma de quem é que temos essa esquisitice do foste! Eu cá voto no fostes!
5. Por fim, não esquecer a simplificação do “há” e “à”. Só mesmo no português, confundir assim as pessoas. Proponho que se substituam ambos por “á”, eliminando as dúvidas existenciais, quando as há (ou à?), de qual deles usar. Assim, corrigiríamos de uma assentada milhares de “Hoje á caracóis” espalhados por outras tantas tascas portuguesas.

sábado, 24 de março de 2007

D. Alice

A D. Alice limava as unhas e olhava distraída pela janela, aguardando a polícia. É verdade que estava abananada. Ver o Engenheiro naqueles preparos, com as goelas cortadas, não era fácil. Mesmo sendo uma mulher de armas, com eles no sítio, a D. Alice quase entrara em pânico. Estivera mesmo para sair desabalada porta fora e deixar tudo tal como estava. Sabia lá ela se o matador ainda por ali andava, à espera de cortar o gorgomilo a mais alguém? O melhor era não esperar para ver!
Mas depois o bom senso imperara. Não é que a D. Alice fosse muito instruída, é verdade que só tinha a quarta classe, mas não era por isso que era mais burra. E tinha as coisas dela todas espalhadas, não podia sair assim com tudo desarrumado. Ainda diziam que a matadora era ela, querem lá ver! E depois, a D. Alice já dera a volta ao escritório todo, estava mesmo no fim do trabalho. Se o matador por lá andasse, já tinha dado cabo dela há montes! Não, ele já se devia ter posto a milhas.
Por isso, a D. Alice lá se enchera de coragem e telefonara para o 112. Tinham-lhe feito centenas de perguntas. Tivera de explicar tudinho: que o Sr. Engenheiro estava mesmo muito morto, com a garganta cortada e tudo; que sim, ela estava sozinha; que não, não tocava em mais nada; que era ali na rua dos correios, ao pé da bomba de gasolina; e que se despachassem que ela tinha de ir para casa dar o almoço à neta; sim, ela esperava, mas despachem-se.
E a D. Alice ficara à espera, o telefone ainda na mão. Mas depois pensara: já que ia esperar, ao menos que se fosse arranjando, não precisava de receber os polícias de bata e chinelos! Quem sabe se lhe enviavam assim um cinquentão ainda jeitoso! A D. Alice voltara a calçar as botas à cavaleiro, aquisição recente na feira do Relógio, deixando à vista um pedaço de coxa entre o cano e a mini-saia. Mirara-se no espelho. Até não estava mal, quarenta e seis anos feitos e parecia uma cachopa, quem dera a muitas! Se não fossem os dentes... mas ainda havia de juntar dinheiro para uma dentadura, isso é que havia! Mas também, com duas filhas e uma neta a cargo, como é que ela podia fazer economias, hã?

A D. Alice despegou os olhos da janela e relanceou um olhar para o corredor. E aqueles dois não havia meio de se despacharem, caraças! Ficara tão contente com a chegada deles, achara que agora já podia ir para casa! Afinal não, ainda queriam falar com ela. Ia chegar atrasada e a filha ia desancá-la, de certezinha que a ia desancar. Quando é que a deixavam ir à vida dela, que raio!

Fim de Ano

(...)
Uma hora depois, já no Bar do Chico e com um whisky duplo por única companhia - o Chico tinha o bar a abarrotar e não tinha mãos a medir nem tempo para as calmas conversas habituais – o Matias remoera, mais uma vez, as mágoas pela sua relação falhada, pela traição da mulher com o amante banqueiro (o Carlos, que agora se armava em pai da sua menina), pelo orgulho ferido e nunca confessado. Para o mundo o divórcio fora de mútuo acordo, a traição calada e nunca discutida. E ele fora o marido ideal, concordando com tudo e facilitando os processos, as partilhas e a custódia da filha. Ficara amigo da ex-mulher, falavam-se com frequência e viam-se às vezes, quando a miúda passava uns dias com o pai. Ninguém suspeitava, a ex-mulher menos que todos, o quanto tudo aquilo o ferira, o quanto continuava ferido. Porque, muito antes do banqueiro, muito antes da traição, já o casamento andava mal, já a intimidade desaparecera e a distância se instalara. Já as conversas se tinham extinguido, deixando apenas os pequenos diálogos utilitários do dia-a-dia. Já o Matias passava mais e mais tempo no trabalho, entregue aos deveres profissionais, e ela mais e mais tempo de volta do emprego e da filha. O amante fora um sintoma, não a causa do fim. E o Matias sabia-o, como a ex-mulher o sabia. O que ela não sabia, nem nunca saberia, era quanto aquilo o magoara, quanto ele quisera transpor a distância, restabelecer a relação, e quão impotente fora para isso, vendo o casamento desmoronar-se contra a sua vontade.
Sozinho com as suas dores, sem o Chico para o distrair, sem se querer deitar antes da meia-noite e da passagem do ano, o Matias abusara dos whiskys e do tabaco.
Agora, o insistente despertador dizia-lhe que já não caminhava para novo, e que os excessos se pagavam no corpo. Com a cabeça a latejar, o Matias preparou uma cafeteira de café e duas aspirinas, e sentou-se a vegetar, à espera que eles produzissem o esperado efeito de voltar a conferir ao mundo dimensões suportáveis.